“O quinto grau da humildade consiste em não esconder o monge ao seu Abade todos os maus pensamentos que lhe vêm ao coração, ou o que de mal tenha cometido ocultamente, mas em lho revelar humildemente, exortando-nos a este respeito a Escritura quando diz: “Revela ao Senhor o teu caminho e espera nele”. E quando diz ainda: “Confessai ao Senhor porque ele é bom, porque sua misericórdia é eterna”. Do mesmo modo o Profeta: “Dei a conhecer a Vós a minha falta e não escondi as minhas injustiças. Disse: acusar-me-ei de minhas injustiças diante do Senhor, e perdoastes a maldade de meu coração”.
RSB, Cap. 7, 44-48
Continuando nessa linha ascendente, a obediência alcança sua plenitude no quinto grau da humildade. Nesse grau o monge declara a seu abade por uma humilde confissão todos os maus pensamentos que lhe nascem no coração e os pecados cometidos ocultamente. A Escritura nos aconselha a isso, dizendo: “Revela ao Senhor os teus caminhos e espera nEle” (Sl 36, 5). Em tal conexão não fala S. Bento em superior como no terceiro grau, nem em prior como no quarto grau da humildade, mas cita o abade, como sendo o foro competente. O “pai espiritual” na plenitude do Espírito Santo toma a seus cuidados o monge de alma aflita e “que confessa contra si mesmo sua injustiça ao Senhor”. O abade, auxiliando e medicando, ocupa perfeitamente o lugar do Senhor. A confissão liberta a alma do mal tornando-a livre para receber o Espírito Santo, que o pai espiritual carinhosamente lhe transmite. A Regra não fala aqui da confissão sacramental, mas da disposição que o monge deve ter para a penitência manifestando humildemente sua consciência ao representante de Deus, o qual, sendo pai e pastor, é também o portador do Espírito para seus discípulos. Graças à influência paternal do abade, o Senhor afasta qualquer “impiedade do coração”, santificando os corações dos discípulos. Assim se estabelece entre o pai e os filhos, o mais íntimo comércio fundado em confiança recíproca. A autoridade e a obediência são elevadas às relações mais Íntimas da piedade — cuidado paternal e dedicação filial — relações essas que pertencem ao número dos mais preciosos dons do Espírito Santo. Esse sopro do Espírito Santo transfigura toda a comunidade monástica, abade e irmãos, formando uma só unidade no amor a Cristo. O quinto grau vem a ser, fora de dúvida, o ponto culminante da humilde atitude interior do monge. Levanta o véu do mistério da iniquidade oculto a todos os homens, até mesmo o que encobre os pensamentos, revelando-o aos olhos do pai espiritual. Deste modo renunciamos totalmente ao próprio eu, até aos últimos pensamentos, e colocamos toda a nossa confiança unicamente em Deus, porque Ele é bondoso. Toda a nossa vida interior entregue assim a Deus, que é que nos poderia ainda impedir de aceitar também humildemente todas as circunstâncias exteriores da vida?
Dom Ildefonso Herwegen, OSB, Sentido e Espírito da Regra de São Bento, pág. 134-135
“O quarto grau da humildade consiste em que, no exercício dessa mesma obediência abrace o monge a paciência, de ânimo sereno, nas coisas duras e adversas, ainda mesmo que se lhe tenham dirigido injúrias, e, suportando tudo, não se entregue nem se vá embora, pois diz a Escritura: “Aquele que perseverar até o fim será salvo”. E também: “Que se revigore o teu coração e suporta o Senhor”. E a fim de mostrar que o que é fiel deve suportar todas as coisas, mesmo as adversas, pelo Senhor, diz a Escritura, na pessoa dos que sofrem: “Por vós, somos entregues todos os dias à morte; somos considerados como ovelhas a serem sacrificadas”. Seguros na esperança da retribuição divina, prosseguem alegres dizendo: “Mas superamos tudo por causa daquele que nos amou”. Também, em outro lugar, diz a Escritura: “Ó Deus, provastes-nos, experimentastes-nos no fogo, como no fogo é provada a prata: induzistes-nos a cair no laço, impusestes tribulações sobre os nossos ombros”. E para mostrar que devemos estar submetidos a um superior, continua: “Impusestes homens sobre nossas cabeças”. Cumprindo, além disso, com paciência o preceito do Senhor nas adversidades e injúrias, se lhes batem numa face, oferecem a outra; a quem lhes toma a túnica cedem também o manto; obrigados a uma milha, andam duas; suportam, como Paulo Apóstolo, os falsos irmãos e abençoam aqueles que os amaldiçoam.”.
RSB, Cap. 7, 35-42
E Continuando nesse caminho da humilhação de si mesmo, no quarto grau da humildade exige S. Bento “que obedecendo nas coisas duras e contrárias, mesmo sofrendo injustiças, o monge guarde silêncio, abrace em seu íntimo, a paciência, e perseverando não esmoreça ou retroceda, pois a Sagrada Escritura diz: “Quem perseverar até o fim, será salvo” (Mt. 10, 22). E de novo: “Fortalece teu coração e espera no Senhor” (S. 26, 14).
Desde o segundo grau da humildade, continuando com o terceiro e quarto, S. Bento tem se voltado para a obediência. No capítulo 5, a obediência é apresentada como sendo o primeiro grau de toda humildade e o fundamento da atitude própria da vida monástica. De modo diverso considera ele aqui o valor moral da obediência para cada monge em particular. Trata-se da submissão interior às pessoas e às condições que dão o cunho próprio à vida da comunidade em que fomos colocados. É aí que se nos deparam a vontade e a providência divina. Não as podemos nem queremos mudar, antes submetemo-nos a elas, por amor de Deus. Começando com o princípio geral do segundo grau, a saber, que viemos fazer a vontade dAquêle que nos chamou, passando depois à obrigação de nos submeter, segundo o exemplo de Cristo, aos superiores (terceiro grau), devemos estar preparados para perseverar nas coisas duras e contrárias, até mesmo ao sermos tratados injustamente (quarto grau).
Já essa maneira de enumerar contém uma gradação. “Coisas duras” são coisas em si duras e difíceis de ser executadas; “coisas adversas” são as que nos contrariam e têm em si algo de repugnante. As “injúrias” causam-nos magoante injustiça. Nestas amargas provações deve o monge abraçar a paciência, como a uma esposa, “abraçar”, guardá-la com amor e retê-la cuidadosamente. Em silêncio, deve suportar as coisas ásperas e até injustas e não pensar em condescender com o próprio coração ou fugir ao compromisso assumido. A possibilidade de tais lutas interiores, já fora ventilada no prólogo. Do mesmo modo foram de antemão anunciadas aos noviços coisas duras e ásperas, e pelas quais se vai a Deus (cap. 58). Ainda hoje também se anuncia ao noviço: “deve renunciar-se completamente a si mesmo e à sua própria vontade. Cumprirá diariamente a vontade do abade e dos demais superiores. Estes não raro ordenar-lhe-ão coisas duras e difíceis de suportar, com o fim de provar a paciência, a obediência e a humildade”. Por fim, nas solenes orações da Profissão monástica faz-se, sobre o professando, a seguinte súplica: “Ensinai-o, Senhor, a desprezar todas as alegrias da vida, a não temer as contrariedades, a não causar injustiças, mas as recebidas, suportá-las com igualdade de ânimo”. Assim, portanto, o monge deveria estar preparado para com paciência e firmeza de coração trilhar a áspera senda de que aqui se fala.
À paciência corresponde também a recompensa divina, a alegria íntima pela certeza de “que em tudo seremos vencedores, graças àquele que nos amou” (Rom. 8, 37). Porque tendo-nos provado e purificado como a prata no cadinho (Sl 65,.10), encontrou-nos sempre puros. Entretanto os superiores que nos provam, não são nem anjos nem santos, mas, ainda como representantes de Deus, não deixam de ser homens. É precisamente em seus defeitos e faltas que consiste nossa maior provação. Os superiores e os irmãos — pois, como S. Paulo, devemos suportar também os falsos irmãos — podem ser pelos seus atos e críticas, uma prova de fogo para nós. Não obstante isso, está escrito: “O Senhor nos sustenta”, não são os superiores nem os irmãos que temos de suportar, mas o Senhor. Assim sendo deve o monge, nas adversidades e injustiças, armar-se daquela paciência que o Evangelho exige para cada cristão: “Batidos em uma das faces, oferecem ainda a outra: aos que lhes tiram a túnica, dão também o pálio; obrigados a andar uma milha, andam duas” (Mt. 5, 39). O monge deve ter sempre em seus lábios uma bênção, mesmo para os que o desprezam. Tudo isto está de acordo com o preceito do Senhor e vale para todos os cristãos. Devemos consequentemente estar preparados para suportar ainda mais do que de nós exigem nossos opressores. Se toleramos as injustiças, não o fazemos por fraqueza de caráter, mas porque é assim que se provam o vigor de nossa fé e a intensidade de nosso amor para com Deus. Além disso não é segundo o direito dos homens que consideramos as injustiças sofridas. Elas são permitidas por Deus, distribuídas por Ele, a cada um; trata-se, pois, do direito de Deus, de seu favor, e de sua caridade. Uma tal concepção está acima de nossas luzes naturais e humanas. Somente a fé a pode aceitar. Desapegados completamente de nós mesmos estamos preparados para sofrer por amor de Deus, quanto a obediência nos impuser, como satisfazendo à vontade divina.
Dom Ildefonso Herwegen, OSB, Sentido e Espírito da Regra de São Bento, pág. 132-134
“O terceiro grau da humildade consiste em que, por amor de Deus, se submeta o monge, com inteira obediência ao superior, imitando o Senhor, de quem disse o Apóstolo: “Fez-se obediente até a morte”.
RSB, Cap. 7, 34
Afastada qualquer inclinação à vontade própria e ao desejo de receber missão especial da parte de Deus, a necessidade do terceiro grau surge espontaneamente. Consiste em que o monge, por amor de Deus, se submeta em tudo ao superior, imitando o Senhor de quem diz o Apóstolo: “Foi obediente até a morte” (Fl 2. 8). Como poderia o monge conhecer sua missão sem ser pela vontade expressa do representante de Deus? Sacrificado o apego à vontade e aos desejos próprios, tanto mais puro se torna seu amor a Deus, fazendo-se apto à obedecer à vontade do superior. Deliberadamente, S. Bento deu aqui preferência ao termo “superior”, em lugar de “Abade”, porque essa obediência deve ser prestada a qualquer superior e não somente ao abade. Desse modo, a humilhação torna-se ainda mais sensível e o valor da “obediência até a morte” é ainda mais sublime. O “mestre rigoroso” prevalece ao “afeto do pai piedoso”.
Dom Ildefonso Herwegen, OSB, Sentido e Espírito da Regra de São Bento, pág. 132
“O segundo grau da humildade consiste em que, não amando a própria vontade, não se deleite o monge em realizar os seus desejos, mas imite nas ações aquela palavra do Senhor: “Não vim fazer a minha vontade, mas a d’Aquele que me enviou”. Do mesmo modo, diz a Escritura: “O prazer traz consigo a pena e a necessidade gera a coroa”.
RSB, Cap. 7, 31-33
“O segundo grau da humildade consiste em que, não amando alguém a própria vontade, não se compraza na satisfação de seus desejos, mas tenha por modelo as palavras do Senhor: “Não vim fazer minha vontade, mas a daquele que me enviou” (Jo. 6, 38). À primeira vista, parece repetir-se aqui algo do que já foi dito. Notamos, porém, visível progresso. No primeiro grau tratava-se até certo ponto da proibição de fazer a própria vontade. Aqui, o monge avança um passo, não quer segui-la, não se compraz nela. Ademais não lhe causa prazer satisfazer a própria vontade. Em toda a sua atuação entrega-se de corpo e alma a cumprir a vontade divina. Vive, exclusivamente, dos pensamentos e da vontade de Cristo, o único que conhecia a vontade do Pai que O tinha enviado. Cada cristão toma parte nesta missão de Cristo, e é da essência do monaquismo pneumático realizar na Igreja e entre os homens a missão que lhe deu o Espírito Santo. Quanto menos o monge conhecer a missão que lhe foi reservada particularmente, tanto mais se apoiará na vontade de Deus. Ele sabe que este caminho é o caminho da cruz. Por isso a citação que lhe é lembrada, não é tirada da Sagrada Escritura, mas de um martirológio onde se diz: “a vontade tem o castigo, a necessidade produz a coroa”.
Dom Ildefonso Herwegen, OSB, Sentido e Espírito da Regra de São Bento, pág. 131-132
“O primeiro grau da humildade consiste em que, pondo sempre o monge diante dos olhos o temor de Deus, evite, absolutamente, qualquer esquecimento, e esteja, ao contrário, sempre lembrado de tudo o que Deus ordenou, revolva sempre, no espírito, não só que o inferno queima, por causa de seus pecados, os que desprezam a Deus, mas também que a vida eterna está preparada para os que temem a Deus; e, defendendo-se a todo tempo dos pecados e vícios, isto é, dos pecados do pensamento, da língua, das mãos, dos pés e da vontade própria, como também dos desejos da carne, considere-se o homem visto do céu, a todo momento, por Deus, e suas ações vistas em toda parte pelo olhar da divindade e anunciadas a todo instante pelos anjos. Mostra-nos isso o Profeta quando afirma estar Deus sempre presente aos nossos pensamentos: “Deus que perscruta os corações e os rins”. E também: “Deus conhece os pensamentos dos homens”. E ainda: “De longe percebestes os meus pensamentos” e “o pensamento do homem vos será confessado”. Portanto, para que esteja vigilante quanto aos seus pensamentos maus, diga sempre, em seu coração, o irmão empenhado em seu próprio bem: “se me preservar da minha iniquidade, serei, então, imaculado diante d ‘Ele”. Assim, é-nos proibido fazer a própria vontade, visto que nos diz a Escritura: “Afasta-te das tuas próprias vontades”. E, também, porque rogamos a Deus na oração que se faça em nós a sua vontade. Aprendemos, pois, com razão, a não fazer a própria vontade, enquanto nos acautelamos com aquilo que diz a Escritura: “Há caminhos considerados retos pelos homens cujo fim mergulha até o fundo do inferno”, e enquanto, também, nos apavoramos com o que foi dito dos negligentes: “Corromperam-se e tornaram-se abomináveis nos seus prazeres”. Por isso, quando nos achamos diante dos desejos da carne, creiamos que Deus está sempre presente junto a nós, pois disse o Profeta ao Senhor: “Diante de vós está todo o meu desejo”. Devemos, portanto, acautelar-nos contra o mau desejo, porque a morte foi colocada junto à porta do prazer. Sobre isso a Escritura preceitua dizendo: “Não andes atrás de tuas concupiscências”. Logo, se os olhos do Senhor “observam os bons e os maus”, e “o Senhor sempre olha do céu os filhos dos homens para ver se há algum inteligente ou que procura a Deus” e se, pelos anjos que nos foram designados, todas as coisas que fazemos são, cotidianamente, dia e noite, anunciadas ao Senhor, devemos ter cuidado, irmãos, a toda hora, como diz o Profeta no salmo, para que não aconteça que Deus nos veja no momento em que caímos no mal, tornando-nos inúteis, e para que, vindo a poupar-nos nessa ocasião porque é Bom e espera sempre que nos tornemos melhores, não venha a dizer-nos no futuro: “Fizeste isto e calei-me”.”
RSB, Cap. 7, 10-30
Logo com o primeiro grau, S. Bento constrói sua escada da humildade sobre vastíssimo fundamento. Inicia a subida com o temor de Deus, dedicando-lhe um longo estudo. Sempre e em toda a parte, o monge deve viver no temor de Deus: “sempre, em cada hora, em todo lugar”. O temor de Deus tem a feição de hábito, o que é indicado pela acentuação de tempo e lugar. Ele consiste em andar continuamente na presença de Deus. É pois, não tanto um sentimento de temor, quanto uma união com Deus reverentemente sentida. Viver no temor de Deus é tomar a Deus como medida de todas as coisas. Quem não vive na presença de Deus, avalia as próprias ações e omissões conforme a medida deste mundo. Com o fim de aprender esta atitude orientada totalmente para Deus, precisa o monge ter a ideia consciente e atual de sua união espiritual com Deus, e nunca se afastar dela para inspirar-se na vida puramente natural. Tal esquecimento seria descer das coisas divinas para as humanas, das eternas para as temporais. Não se esquece o que se ama. O contraste entre temor de Deus e esquecimento aparece ainda mais nitidamente, quando consideramos o resultado final dessas duas atitudes espirituais. O temor de Deus leva à vida eterna; esquecê-lo converte-se em desprezo de Deus e conduz ao inferno. Temos novamente o sentido perfeito da humildade como união com Deus e do orgulho como afastamento de Deus. Os que já nesta vida possuem o temor, trazem em si a vida eterna; os desprezadores de Deus, ao contrário, têm a reprovação que dá ao conceito do inferno sua nota final. É preciso vigilância por causa dos “pecados e faltas do pensamento, da língua, das mãos, dos pés, da própria vontade, assim como dos desejos da carne”. Deste modo, pois, faz-se alusão aos dois lados da escada: alma e corpo devem estar sujeitos à humildade. Qualquer exercício de humildade é propriamente, domínio de si mesmo, observância da norma prescrita por Deus e aplicação da medida divina à vida natural. Porque tudo se passa aos olhos de Deus, tudo é visto e julgado por Ele. Essa onipresença de Deus é insistentemente lembrada ao monge. “Creia-se que se é visto por Deus, do céu, sempre e a qualquer hora; que nossas ações em qualquer lugar estão sob suas vistas e continuamente são relatadas pelos anjos, como nos mostra o profeta referindo-se à contínua presença de Deus, dizendo: “Deus perscruta o coração e os rins”.
Ainda uma vez à onipresença de Deus é apresentada aos olhos da alma, de modo impressionante. Vemos novamente os anjos a subirem e descerem unindo-nos a Deus dia e noite, como mensageiros entre o céu e a terra. Deus, em sua bondade, ainda nos deixa tempo para nos corrigirmos, mas seu juízo é inevitável. Desde já apresentamo-nos continuamente perante o juiz, para que, calando-se no tempo presente, não pronuncie no final a sentença inapelável. Onde os olhos se voltam para Deus incessantemente, onde se cumpre a sua vontade, aí há humildade. Onde, porém, falta este primeiro grau, o temor de Deus, falta o fundamento de toda a vida monástica. “O temor de Deus é o princípio da sabedoria” (Prov. 1, 7), e a sabedoria é o fruto amadurecido da vida monástica. Como poderá amadurecer faltando- lhe a raiz?
Dom Ildefonso Herwegen, OSB, Sentido e Espírito da Regra de São Bento, pág. 125-126.131
“Irmãos, a Escritura divina nos clama dizendo: “Todo aquele que se exalta será humilhado e todo aquele que se humilha será exaltado”. Indica-nos com isso que toda elevação é um gênero da soberba, da qual o Profeta mostra precaver-se quando diz: “Senhor, o meu coração não se exaltou, nem foram altivos meus olhos; não andei nas grandezas, nem em maravilhas acima de mim. Mas, que seria de mim se não me tivesse feito humilde, se tivesse exaltado minha alma? Como aquele que é desmamado de sua mãe, assim retribuirias a minha alma. Se, portanto, irmãos, queremos atingir o cume da suma humildade e se queremos chegar rapidamente àquela exaltação celeste para a qual se sobe pela humildade da vida presente, deve ser erguida, pela ascensão de nossos atos, aquela escada que apareceu em sonho a Jacó, na qual lhe eram mostrados anjos que subiam e desciam. Essa descida e subida, sem dúvida, outra coisa não significa, para nós, senão que pela exaltação se desce e pela humildade se sobe. Essa escada ereta é a nossa vida no mundo, a qual é elevada ao céu pelo Senhor, se nosso coração se humilha. Quanto aos lados da escada, dizemos que são o nosso corpo e alma, e nesses lados a vocação divina inseriu, para serem galgados, os diversos graus da humildade e da disciplina.”
RSB, Cap. 7, 1-9
Nas palavras do Senhor, citadas de início: “Quem se exalta será humilhado e quem se humilha será exaltado” (Lc. 14, 11) já se acha resumida toda a doutrina do capítulo sétimo, a saber: toda a exaltação de si mesmo, toda a acentuação do próprio eu, é uma manifestação do orgulho. É, pois, sobre a base imediata da doutrina de Cristo, que o Santo Patriarca assenta o seu ensinamento, é “pela orientação do Evangelho” que conduz seus discípulos.
A natureza impele o homem a se exaltar, a conquistar por todos os meios o poder, a riqueza e a glória. Com tal exaltação, o justo instinto natural da própria conservação transpõe os limites do normal. É lícito, é até um dever procurar realizar e aperfeiçoar o que dentro de si existe de préstimos e valores. A soberba, porém, e com ela o orgulho, principiam com uma pretensão sem razão nem cabimento, levando o homem, cheio de si, a exaltar-se sobre seu semelhante. Tal orgulho é mentiroso em si mesmo. Devemos precaver-nos contra a soberba; pois sendo intrinsecamente falsa, conduz à humilhação. Aquele, porém, que se retrai modestamente, embora supere os outros em valor interior, será exaltado logo que seu valor verdadeiro for reconhecido. Humildade, pois, é o reconhecimento real do que se possui interiormente, é a verdade. Tudo isso é ilustrado com as palavras do salmo 130. O homem não se deve exaltar nem interior, nem exteriormente, porque ultrapassaria OS limites da veracidade. A quem cai em semelhante falta Deus retribuirá “como ao lactante que é afastado do seio materno”. Deus se retirará do homem orgulhoso e deixá-lo-á entregue a si mesmo. Deus procede com os orgulhosos como a mãe que afasta dos seios o filhinho. Aparentemente trata-o ela de modo áspero e insensível contrariando seus desejos, mas é para o verdadeiro bem e proveito dele. Deste ensinamento da Sagrada Escritura, contrário ao orgulho, tira S. Bento uma consequência positiva: “Assim pois, irmãos, se quisermos atingir o cume da suprema humildade, e alcançar com presteza aquela altura celeste a que, na presente vida, se chega pela humildade, devemos erigir, pelo ritmo ascendente de nossa vida, aquela escada que Jacó viu em sonho, na qual se lhe mostraram os anjos a subir e descer. Sem dúvida, não nos devemos imaginar outra coisa com este subir e descer, senão que, pela exaltação de si mesmo se desce e pela humildade se sobe. A escada erigida é nossa vida na terra que o Senhor deve reconduzir ao céu, quando o coração estiver humilhado”. Desse modo, S. Bento faz passar aos olhos de seus monges um quadro familiar aos primeiros cristãos, a visão noturna de Jacó (Gen. 28, 12), mas que, aplicada à humildade, nos parece estranha. Seu profundo sentido só se nos tornará claro pelo contexto da Sagrada Escritura. Jacó está sendo perseguido pelo irmão Esaú, longe da casa paterna. Tinha enganado o irmão, irritado o pai, com a cumplicidade de sua mãe. Jacó é um pobre fugitivo sobre a terra, solitário, abandonado, repelido de todos. Seu futuro é negro. À dor que a despedida da casa paterna lhe causou, atormenta-lhe a alma. Perdidas todas as esperanças terrenas, apossou-se dele completo abatimento. Foi então que atingiu o cume da humildade. Uma coisa soube Jacó manter em meio desta desgraça, foi o poder de suportar, de modo certo e justo, a desventura que lhe aconteceu. Compreende o sentido dessa catástrofe, isto é, a completa entrega de si mesmo à Providência divina. À pedra sobre a qual tem de repousar a cabeça, é uma prova de quanto estava Jacó humilhado. Mas, quão alto elevou-o aos olhos de Deus esta humilhação, no-lo diz a mesma pedra, pois, ao amanhecer, ele a erigiu em monumento, pela unção do óleo, dando-lhe o nome de “domus Dei”, mansão sagrada de Deus. No completo abandono em que se achava, a solidão do deserto tornou-se-lhe um palco de revelações de vida. Durante o sono, Jacó viu uma escada que se apoiava na terra e tocava com a outra ponta o céu. Os anjos de Deus subiam e desciam. Foi em meio a seu abandono que ele ouviu a promessa que abrange o tempo e o mundo: em ti serão abençoadas todas as gerações da terra! Profundamente emocionado com esta revelação, Jacó exclamou: “Em verdade o Senhor está neste lugar, e eu não sabia, aqui é a casa de Deus e a porta do céu”. O termo de comparação entre a escada celeste e a humildade consiste em que o homem mais profundamente humilhado é que está mais próximo de Deus e mais favorecido por sua graça. Só aos de corações humildes é erigida por Deus a escada celeste. A exaltação de si mesmo, na realidade é uma descida, pois é afastamento de Deus, comparada aos anjos que, descendo à terra, se afastavam da imediata proximidade de Deus. A humildade, a exemplo dos anjos que subiam ao céu, conduz para junto de Deus. Não há lugar na terra, por mais isolado, que não se possa tornar porta do céu. Não há alma humana, por mais abandonada, à qual não apareça em qualquer parte uma escada celeste. Quanto mais o homem se humilhar, mais próximo estará de Deus. A humildade deve apossar-se do homem todo, corpo e alma. “Dizemos que o corpo e à alma são os dois lados da escada”. Nesses lados colocou a vocação divina os diferentes graus da humildade e da disciplina para que os galguemos. Sem os suportes laterais, os degraus não têm valor, são apenas pedaços de madeira amontoados uns sobre os outros. Presos, porém, aos suportes laterais formam a escada. O homem todo, corpo e alma, tem de realizar a humildade. Compete ao corpo executar os pensamentos e desejos da alma. Trataremos agora da humildade da alma e da disciplina do corpo. A vocação divina dispôs os degraus da subida de tal modo que, seguindo os ensinamentos de S. Bento, realizamos em nós um plano divino, respondemos a um chamado de Deus.
Dom Ildefonso Herwegen, OSB, Sentido e Espírito da Regra de São Bento, pág. 122-124
“Façamos o que diz o profeta: “Eu disse, guardarei os meus caminhos para que não peque pela língua: pus uma guarda à minha boca: emudeci, humilhei-me e calei as coisas boas”. Aqui mostra o Profeta que, se, às vezes, se devem calar mesmo as boas conversas, por causa do silêncio, quanto mais não deverão ser suprimidas as más palavras, por causa do castigo do pecado? Por isso, ainda que se trate de conversas boas, santas e próprias a edificar, raramente seja concedida aos discípulos perfeitos licença de falar, por causa da gravidade do silêncio, pois está escrito: “Falando muito não foges ao pecado”, e em outro lugar: “a morte e a vida estão em poder da língua”. Com efeito, falar e ensinar compete ao mestre; ao discípulo convém calar e ouvir.”
RSB, Cap. 6, 1-6
O sagrado silêncio é uma herança do monaquismo primitivo, provindo do silencioso deserto. S. Bento convida cada um a refletir consigo mesmo sobre a importância da palavra, enquanto essa pode influir sobre a formação de outros. “Façamos o que disse o profeta: “Eu disse: terei cuidado com os meus caminhos, para que não peque com a minha língua, porei sentinela à minha boca; calei-me, humilhei-me e silenciei até coisas boas” (Sl 38, 2 ss.). O capítulo sobre o silêncio começa, pois, com as palavras “Eu disse”. É por assim dizer a última palavra do monge ao mundo: não terei, sem motivos, relações com os homens, mas tomarei cuidado com minhas palavras. Nisso já está enunciado que, com a lei do silêncio, foi dada também a norma do falar. Guardar silêncio com os homens, dá liberdade para falar com Deus. Por isso o silêncio (taciturnidade) não é, mesmo para os monges de hoje, uma simples recordação tradicional do tempo dos anacoretas, ou um preceito da disciplina monástica, mas é uma atitude espiritual essencialmente inerente ao estado monástico. Deus fala aos que guardam silêncio. Os primeiros monges retiravam-se para onde tudo estava em silêncio, onde só Deus falava à alma e a alma a Deus. No silêncio, a visão de Deus se amplifica, a oração se aprofunda. Daí ser esse um elemento essencial no caráter pneumático do estado monástico. Tanto nele quanto na palavra inspirada pelo Espírito Santo, se encontra a mesma virtude. Certa vez, pedindo alguém ao abade Pambo uma sentença espiritual (lógion) para um determinado bispo, o abade respondeu: “Se ele não tirar nenhum lucro do meu silêncio, então também não terá nenhum proveito com minhas palavras”.
O profeta inspirado, o salmista, fornece a S. Bento o princípio geral, sobre o qual o Santo levanta seu edifício doutrinal. S. Bento se afasta, porém, essencialmente do sentido literal do salmo. O salmista fala de um homem temente a Deus, duramente provado, que se submete humildemente à providência divina. “Guardei silêncio da fortuna, para não me revoltar contra o infortúnio, que Deus me enviou”. Este é o sentido do salmo. Do contexto geral, S. Bento tira para seu fim, somente as palavras “calei as coisas boas”; explicando-as no sentido moral do bem em oposição ao mal. Este modo e interpretar a Escritura mostra quanto importa ao Santo por sua doutrina, em si muito clara, em relação com a palavra da Bíblia, assegurando-lhe autoridade e consagração sobrenatural. Com isso, S. Bento alcança também a gradação: se, às vezes, devem-se omitir as boas conversas, com mais razão as más. O complemento “por causa do castigo do pecado” é, de novo, tirado do salmo 38, cujo versículo 12 reza: “castigas os homens por causa dos seus pecados”. Sentimos como os salmos estavam vivos na alma de S. Bento. Meditando a palavra do salmo tira o Santo uma conclusão importante: “Por conseguinte, por causa da importância do silêncio, até aos discípulos perfeitos, só raramente seja dada licença para falar, mesmo tratando-se de conversas boas, santas e edificantes”. Aqui, o acento está nas palavras “discípulo perfeito”, “pois, — assim reza o texto em seguida — falar e ensinar convém ao mestre; ao discípulo, mesmo perfeito, assenta ouvir e calar”.
Dom Ildefonso Herwegen, OSB, Sentido e Espírito da Regra de São Bento, pág. 115-116
Voltar à paz, antes do pôr-do-sol, com aqueles com quem teve desavença.
E nunca desesperar da misericórdia de Deus.
RSB, Cap. 4, 63-74
“Realizar diariamente na prática os mandamentos do Senhor”, e praticá-los com profunda sinceridade. Neste princípio geral que soa como sendo quase a primeira suposição de qualquer virtude, estão resumidas as últimas exigências, feitas ao monge perfeito:
“Amar a castidade,
não odiar a pessoa alguma,
não ter ciúme de pessoa alguma,
não alimentar a inveja,
não amar as disputas,
fugir do orgulho,
venerar os mais velhos,
amar os mais jovens,
rezar pelos inimigos por causa do amor de Cristo (Mt. 5,44),
tratando-se de desavenças fazer as pazes antes do pôr do sol (Ef. 4, 26)
e nunca desesperar da misericórdia de Deus”.
Em toda a Regra, S. Bento só escreveu sobre a castidade as palavras aqui citadas. Há uma grande distância entre o sexto mandamento: “Não cometerás adultério”, colocado logo no início deste capítulo e o lugar aqui citado, o qual não diz: viver castamente, ou praticar a castidade, mas: “amar a castidade”. Neste “instrumentum” aqui mencionado, trata-se talvez do último dos doze frutos do Espírito Santo, o qual exprime o grau supremo de espiritualidade do monaquismo cristão. Pressupõe-se, naturalmente, tudo que se refere à vida casta dos monges, o que desde seus primórdios era considerado coisa evidente. Esta nobreza e transfiguração de todo o homem, não se pode compreender senão partindo do mais sublime princípio da caridade. Por esta razão reza a sentença: “Amar a castidade”. Os frutos do Espírito Santo, que começam com a caridade, elevam-se até a castidade. Com isto, fecha-se o anel dos carismas. Assim como nos sete dons do Espírito Santo, o último, o temor de Deus, é chamado o princípio da sabedoria, assim a castidade pode ser chamada aqui o princípio da caridade, e ao mesmo tempo, sua coroa. A caridade e a castidade são uma só coisa. Assim as sentenças que ainda se seguem não fazem senão descrever a caridade perfeita, a qual nunca odeia, nunca alimenta ciúmes e em suas ações, nunca se deixa levar pela inveja. A verdadeira caridade sabe refreiar todas estas explosões das paixões. As desavenças, por motivos reais, nem sempre podem ser evitadas, pois não dependem só de uma parte; não devemos amá-las, e o ideal será evitá-las. Devemos fugir do orgulho, da exaltação do próprio eu, que mina a humildade e mata a caridade. Na comunidade devemos, por reverência, inclinar-nos diante dos mais velhos, e cuidar dos mais jovens com caridade e solicitude. Sendo a caridade de Cristo o fundamento da nossa, nos dará a força para realizar o preceito do sermão da montanha, isto é, rezar pelos nossos inimigos e perseguidores (Mt. 5, 44). Conforme a palavra de S. Paulo ao Efésios, o sol não se deve pôr sobre nossas discórdias. Finalmente uma palavra de admoestação e consolo, que surpreende, e contudo, vem de um profundo conhecimento da alma: “nunca desesperar da misericórdia de Deus”. Precisamente aquele que se esforça seriamente, que faz grandes sacrifícios, e abandona tudo por amor de Deus, é que corre o perigo de um colapso. Diante de grandes desilusões, de infidelidades padecidas, de falta de compreensão mesmo por parte dos representantes de Deus, está ele sujeito a perder as esperanças. Tal crise pode sobrevir em meio dos trabalhos da profissão e sacrifícios em prol da comunidade. Pode aparecer também ante a perspectiva da morte. Nunca, porém, se deve transformar em catástrofe: “Quem em Deus confia, será protegido por sua misericórdia” (Sl 31, 10). Penetrando Deus todos os movimentos da alma, percebe em nós ainda algo de bom, mesmo quando já não o percebemos. Ele é caridade (1 Jo. 4, 16). Assim a doutrina de S. Bento sobre as virtudes começa com o amor de Deus, como sendo o primeiro mandamento fundamental, e termina com a misericórdia divina como um refúgio.
Quebrar imediatamente de encontro ao Cristo os maus pensamentos que lhe advêm ao coração e revelá-los a um conselheiro espiritual.
Guardar sua boca da palavra má ou perversa.
Não gostar de falar muito.
Não falar palavras vãs ou que só sirvam para provocar riso.
Não gostar do riso excessivo ou ruidoso.
Ouvir de boa vontade as santas leituras.
Dar-se frequentemente à oração.
Confessar todos os dias a Deus na oração, com lágrimas e gemidos, as faltas passadas e daí por diante emendar-se delas.
Não satisfazer os desejos da carne.
Odiar a própria vontade.
Obedecer em tudo às ordens do Abade, mesmo que este, o que não aconteça, proceda de outra forma, lembrando-se do preceito do Senhor: “Fazei o que dizem, mas não o que fazem”.
Não querer ser tido como santo antes que o seja, mas primeiramente sê-lo para que como tal o tenham com mais fundamento..
RSB, Cap. 4, 48-62
O último grupo de, sentenças, com suas referências escatológicas à eternidade, manifesta claramente a conclusão de um fio de ideias. Pode-se justificar que se considerem neste catálogo de virtudes até agora descrito, aquelas exigências feitas a todos os cristãos relativas à vida espiritual; forma assim o pressuposto para a sublime e constante aspiração: do monge. A passagem abrupta da morte para O actus vitae parece também sugerir que deve começar aqui uma nova vida:
“Vigiar, a cada hora, as ações de sua vida.
Estar certo de que Deus nos vê em tôda a parte”,
Estes dois “instrumentos” formam a ponte para uma série mais longa de sentenças, estabelecendo a união com Deus que nunca deve ser interrompida nem no tempo nem no espaço. Esta união cria a atmosfera espiritual na qual a vida do monge se desenvolve, não só quanto às manifestações externas, mas também, e principalmente, quanto à atitude interna. O monge anda na presença de Deus para Quem está dirigido seu olhar interior. Sempre e em toda parte, seu modo de agir é vigiado pelo amor. Este recolhimento interior penetrará de tal modo o homem que ele procurará elevar todos os seus pensamentos e desejos até os mais leves movimentos. Isto é atestado pela observância dos seguintes ensinamentos:
“Os maus pensamentos que se aproximam do coração, desfazê-los imediatamente em Cristo e revelá-los ao pai espiritual,
preservar a boca de conversas más e depravadas,
não gostar de muito falar,
não pronunciar palavras vãs e jocosas,
não gostar de rir muito e às gargalhadas,
ouvir com prazer as santas leituras,
entregar-se com frequência à oração,
confessar a Deus diariamente, na oração, com lágrimas e gemidos seus pecados passados; mas para o futuro, corrigir-se do pecado,
não seguir os prazeres da carne (Gal. 5, 16),
odiar a própria vontade,
obedecer em. tudo aos preceitos do abade, mesmo quando ele agir de modo diferente — o que Deus não permita! — e, tendo na memória o preceito do Senhor: “fazei o que eles dizem, mas não façais o que eles fazem!” (Mt. 23, 3),
não querer ser chamado santo antes de o ser; mas sê-lo primeiro para que assim seja chamado com razão”.
As almas que aspiram à virtude são também assaltadas por maus pensamentos. No prólogo falou S. Bento destas perturbações da alma e opôs-lhes logo como barreira a rocha inabalável que é Cristo. Logo que o espírito mau se aproximar da alma, o olhar confiante e cheio de fé em Cristo, há de transformar as trevas em claridade, e desfazer todo o mal de encontro a Cristo.
Ao falar deve a palavra ser ponderada com cuidado e parcamente empregada, não se rebaixando a coisas superficiais ou ridículas. Não se pretende provocar os outros ao riso e, apesar de toda a alegria, guarda-se uma seriedade comedida. O ouvido inclina-se com prazer às santas leituras, e delas haure sempre novo entusiasmo para a oração. Quanto mais se progride no domínio de si mesmo e na virtude, tanto mais se aprende a julgar, de maneira justa, os pecados e faltas passadas. Esse recolhimento em si mesmo leva o monge a se confessar com lágrimas diante de Deus, e suplicar ao Senhor, na oração, perdão e misericórdia, renovando assim seu arrependimento do pecado. Ele não se deixará levar pelos instintos naturais ligados a nosso corpo, mas sob todos os aspectos odiará a própria vontade como a um sedutor. A par destes requisitos cristãos, válidos em geral para a vida cristã bem ordenada, tem o monge ainda os preceitos especiais, ordens e incumbências do abade, cuja execução se torna então sensivelmente pesada, quando o próprio abade leva uma vida imperfeita. Mas as faltas dos superiores não dispensam absolutamente a obediência. Ao contrário, S. Bento deixa aparecer aqui, claramente a vocação pneumática do abade, apoiando-se na palavra do Senhor: “fazei os que eles dizem, mas não façais o que fazem” (Mt. 23, 3). É a única passagem neste capítulo em que S. Bento se refere expressamente à Sagrada Escritura como ao “preceito do Senhor”, provavelmente com o fim de dar a tão dura prova de fé o mais firme fundamento. Tudo que o abade ensina ou ordena exige obediência; o que faz de mal pertence ao juízo de Deus. O monge não se deve arvorar em juiz do seu abade, que é para ele o arauto e o profeta da palavra divina. Conforme o capítulo segundo da Santa Regra, o abade é duplamente mestre: em palavras e ações. Se suas ações não forem exemplares, suas palavras continuam a sê-lo.
Depois de ter experimentado na vida prática todos estes instrumentos das boas obras, o discípulo de S. Bento poderia julgar ter alcançado a perfeição. Não é ele, graças a seu estado, chamado santo, bem-aventurado, reverendo padre? Contudo, agora é que deve, pouco a pouco, esforçar-se para chegar àqueles graus de santidade e união com Deus, os quais o farão digno de ser cognominado com semelhante título. Novamente parece tratar-se aqui de uma conclusão. Quem se submeteu completamente, nos pensamentos e sentidos, com o coração, a boca e o ouvido, a Deus e até a seus representantes humanos e imperfeitos, aparece aos olhos dos homens como perfeito. Entretanto, grande subida resta ainda ao que procura as virtudes que são menos percebidas exterior do que interiormente.
O que achar de bem em si, atribuí-lo a Deus e não a si mesmo.
Mas, quanto ao mal, saber que é sempre obra sua e a si mesmo atribuí-lo.
Temer o dia do juízo.
Ter pavor do inferno.
Desejar a vida eterna com toda a cobiça espiritual.
Ter diariamente diante dos olhos a morte a surpreendê-lo.
RSB, Cap. 4, 41-47
A série seguinte de princípios espirituais dirigem o olhar dos cristãos para as últimas grandes decisões, denominadas novíssimos pela teologia. Estão completamente impregnados dos pensamentos da eternidade. S. Bento dá a entender logo na primeira sentença que todo o nosso futuro está unicamente nas mãos de Deus. Em relação a esse futuro não podemos agir como fazemos com nossas ações ou omissões atuais. Só a firme confiança no Senhor e a contínua união com Ele dar-nos-á garantia de alcançarmos com êxito a perfeição. Por menos que possamos, por nós mesmos, determinar a sorte eterna, devemos todavia, no temor e na esperança, ter presente a realidade vindoura. Isso nos ensina O Santo nas seguintes sentenças:
“Depositar em Deus a própria esperança.
O bem que se nota em si, atribuí-lo a Deus e não a si mesmo,
mas sempre reconhecer o mal como própria ação e atribuir a si,
temer o dia do juízo,
ter medo do inferno,
desejar a vida eterna com todo o ardor espiritual,
ter diariamente a morte diante dos olhos”.
Nossa esperança constitui todo o nosso futuro, isto é, qualquer desenrolar da vida que escape a nosso domínio. A primeira sentença, pois, abrange tudo que ainda segue neste parágrafo. Para que ninguém suponha que por suas virtudes e boas obras, tenha certeza ou direito, frisa-se expressamente que o bem em nós, é apenas um dom e uma graça de Deus, mas o mal que nunca pode vir de Deus, é obra nossa, oposta a Deus. À sentença virá com o dia do juízo, Apesar da grande confiança na misericórdia de Deus, temos de esperar nÊle com humildade e temor. Deve ser o temor da criança que se abriga nos braços do pai e não um temor sem esperança. O dia do juízo é a Parusia de Cristo, sobre a qual Ele mesmo diz: “Erguei as vossas cabeças, pois se aproxima vossa redenção!” (Lc 21, 28) O dia do juízo significa por consequência, a plenitude de nossa salvação. Havemos de tremer perante o inferno, como sendo o eterno afastamento de Deus. Mas devemos, com todo ardor, desejar a vida eterna, enquanto é a suprema e inebriante revelação de Deus a nós. A cobiça espiritual de que S. Bento fala aqui, é aquele desejo de Deus que já no santo batismo, o Espírito Santo nos concedeu como vida eterna, como participação da natureza divina (2 Pd 1, 4). A morte é a porta de ingresso para a eternidade. E a passagem através desta porta significa, para nós, a última decisão. A morte é o momento mais importante de nossa existência terrena. Mas nós a consideramos com certa suspeita por ser tudo incerto: tempo, lugar, e circunstâncias. Vemos na morte o “estipêndio do pecado” (Rom. 6, 23). Pode-se admitir aqui também os outros sentidos de “suspeitar”: olhar para o alto, olhar com admiração. Neste caso temos na morte menos a conclusão da vida terrena do que o início de nossa transfiguração. Então o anjo de Deus nos reconduzirá às mãos de nosso Criador para a eterna consumação. Esta explicação está intimamente ligada ao desejo, antes mencionado, da vida eterna.