“Irmãos, a Escritura divina nos clama dizendo: “Todo aquele que se exalta será humilhado e todo aquele que se humilha será exaltado”. Indica-nos com isso que toda elevação é um gênero da soberba, da qual o Profeta mostra precaver-se quando diz: “Senhor, o meu coração não se exaltou, nem foram altivos meus olhos; não andei nas grandezas, nem em maravilhas acima de mim. Mas, que seria de mim se não me tivesse feito humilde, se tivesse exaltado minha alma? Como aquele que é desmamado de sua mãe, assim retribuirias a minha alma. Se, portanto, irmãos, queremos atingir o cume da suma humildade e se queremos chegar rapidamente àquela exaltação celeste para a qual se sobe pela humildade da vida presente, deve ser erguida, pela ascensão de nossos atos, aquela escada que apareceu em sonho a Jacó, na qual lhe eram mostrados anjos que subiam e desciam. Essa descida e subida, sem dúvida, outra coisa não significa, para nós, senão que pela exaltação se desce e pela humildade se sobe. Essa escada ereta é a nossa vida no mundo, a qual é elevada ao céu pelo Senhor, se nosso coração se humilha. Quanto aos lados da escada, dizemos que são o nosso corpo e alma, e nesses lados a vocação divina inseriu, para serem galgados, os diversos graus da humildade e da disciplina.”
RSB, Cap. 7, 1-9
Nas palavras do Senhor, citadas de início: “Quem se exalta será humilhado e quem se humilha será exaltado” (Lc. 14, 11) já se acha resumida toda a doutrina do capítulo sétimo, a saber: toda a exaltação de si mesmo, toda a acentuação do próprio eu, é uma manifestação do orgulho. É, pois, sobre a base imediata da doutrina de Cristo, que o Santo Patriarca assenta o seu ensinamento, é “pela orientação do Evangelho” que conduz seus discípulos.
A natureza impele o homem a se exaltar, a conquistar por todos os meios o poder, a riqueza e a glória. Com tal exaltação, o justo instinto natural da própria conservação transpõe os limites do normal. É lícito, é até um dever procurar realizar e aperfeiçoar o que dentro de si existe de préstimos e valores. A soberba, porém, e com ela o orgulho, principiam com uma pretensão sem razão nem cabimento, levando o homem, cheio de si, a exaltar-se sobre seu semelhante. Tal orgulho é mentiroso em si mesmo. Devemos precaver-nos contra a soberba; pois sendo intrinsecamente falsa, conduz à humilhação. Aquele, porém, que se retrai modestamente, embora supere os outros em valor interior, será exaltado logo que seu valor verdadeiro for reconhecido. Humildade, pois, é o reconhecimento real do que se possui interiormente, é a verdade. Tudo isso é ilustrado com as palavras do salmo 130. O homem não se deve exaltar nem interior, nem exteriormente, porque ultrapassaria OS limites da veracidade. A quem cai em semelhante falta Deus retribuirá “como ao lactante que é afastado do seio materno”. Deus se retirará do homem orgulhoso e deixá-lo-á entregue a si mesmo. Deus procede com os orgulhosos como a mãe que afasta dos seios o filhinho. Aparentemente trata-o ela de modo áspero e insensível contrariando seus desejos, mas é para o verdadeiro bem e proveito dele. Deste ensinamento da Sagrada Escritura, contrário ao orgulho, tira S. Bento uma consequência positiva: “Assim pois, irmãos, se quisermos atingir o cume da suprema humildade, e alcançar com presteza aquela altura celeste a que, na presente vida, se chega pela humildade, devemos erigir, pelo ritmo ascendente de nossa vida, aquela escada que Jacó viu em sonho, na qual se lhe mostraram os anjos a subir e descer. Sem dúvida, não nos devemos imaginar outra coisa com este subir e descer, senão que, pela exaltação de si mesmo se desce e pela humildade se sobe. A escada erigida é nossa vida na terra que o Senhor deve reconduzir ao céu, quando o coração estiver humilhado”. Desse modo, S. Bento faz passar aos olhos de seus monges um quadro familiar aos primeiros cristãos, a visão noturna de Jacó (Gen. 28, 12), mas que, aplicada à humildade, nos parece estranha. Seu profundo sentido só se nos tornará claro pelo contexto da Sagrada Escritura. Jacó está sendo perseguido pelo irmão Esaú, longe da casa paterna. Tinha enganado o irmão, irritado o pai, com a cumplicidade de sua mãe. Jacó é um pobre fugitivo sobre a terra, solitário, abandonado, repelido de todos. Seu futuro é negro. À dor que a despedida da casa paterna lhe causou, atormenta-lhe a alma. Perdidas todas as esperanças terrenas, apossou-se dele completo abatimento. Foi então que atingiu o cume da humildade. Uma coisa soube Jacó manter em meio desta desgraça, foi o poder de suportar, de modo certo e justo, a desventura que lhe aconteceu. Compreende o sentido dessa catástrofe, isto é, a completa entrega de si mesmo à Providência divina. À pedra sobre a qual tem de repousar a cabeça, é uma prova de quanto estava Jacó humilhado. Mas, quão alto elevou-o aos olhos de Deus esta humilhação, no-lo diz a mesma pedra, pois, ao amanhecer, ele a erigiu em monumento, pela unção do óleo, dando-lhe o nome de “domus Dei”, mansão sagrada de Deus. No completo abandono em que se achava, a solidão do deserto tornou-se-lhe um palco de revelações de vida. Durante o sono, Jacó viu uma escada que se apoiava na terra e tocava com a outra ponta o céu. Os anjos de Deus subiam e desciam. Foi em meio a seu abandono que ele ouviu a promessa que abrange o tempo e o mundo: em ti serão abençoadas todas as gerações da terra! Profundamente emocionado com esta revelação, Jacó exclamou: “Em verdade o Senhor está neste lugar, e eu não sabia, aqui é a casa de Deus e a porta do céu”. O termo de comparação entre a escada celeste e a humildade consiste em que o homem mais profundamente humilhado é que está mais próximo de Deus e mais favorecido por sua graça. Só aos de corações humildes é erigida por Deus a escada celeste. A exaltação de si mesmo, na realidade é uma descida, pois é afastamento de Deus, comparada aos anjos que, descendo à terra, se afastavam da imediata proximidade de Deus. A humildade, a exemplo dos anjos que subiam ao céu, conduz para junto de Deus. Não há lugar na terra, por mais isolado, que não se possa tornar porta do céu. Não há alma humana, por mais abandonada, à qual não apareça em qualquer parte uma escada celeste. Quanto mais o homem se humilhar, mais próximo estará de Deus. A humildade deve apossar-se do homem todo, corpo e alma. “Dizemos que o corpo e à alma são os dois lados da escada”. Nesses lados colocou a vocação divina os diferentes graus da humildade e da disciplina para que os galguemos. Sem os suportes laterais, os degraus não têm valor, são apenas pedaços de madeira amontoados uns sobre os outros. Presos, porém, aos suportes laterais formam a escada. O homem todo, corpo e alma, tem de realizar a humildade. Compete ao corpo executar os pensamentos e desejos da alma. Trataremos agora da humildade da alma e da disciplina do corpo. A vocação divina dispôs os degraus da subida de tal modo que, seguindo os ensinamentos de S. Bento, realizamos em nós um plano divino, respondemos a um chamado de Deus.
Dom Ildefonso Herwegen, OSB, Sentido e Espírito da Regra de São Bento, pág. 122-124
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