“O primeiro grau da humildade consiste em que, pondo sempre o monge diante dos olhos o temor de Deus, evite, absolutamente, qualquer esquecimento, e esteja, ao contrário, sempre lembrado de tudo o que Deus ordenou, revolva sempre, no espírito, não só que o inferno queima, por causa de seus pecados, os que desprezam a Deus, mas também que a vida eterna está preparada para os que temem a Deus; e, defendendo-se a todo tempo dos pecados e vícios, isto é, dos pecados do pensamento, da língua, das mãos, dos pés e da vontade própria, como também dos desejos da carne, considere-se o homem visto do céu, a todo momento, por Deus, e suas ações vistas em toda parte pelo olhar da divindade e anunciadas a todo instante pelos anjos. Mostra-nos isso o Profeta quando afirma estar Deus sempre presente aos nossos pensamentos: “Deus que perscruta os corações e os rins”. E também: “Deus conhece os pensamentos dos homens”. E ainda: “De longe percebestes os meus pensamentos” e “o pensamento do homem vos será confessado”. Portanto, para que esteja vigilante quanto aos seus pensamentos maus, diga sempre, em seu coração, o irmão empenhado em seu próprio bem: “se me preservar da minha iniquidade, serei, então, imaculado diante d ‘Ele”. Assim, é-nos proibido fazer a própria vontade, visto que nos diz a Escritura: “Afasta-te das tuas próprias vontades”. E, também, porque rogamos a Deus na oração que se faça em nós a sua vontade. Aprendemos, pois, com razão, a não fazer a própria vontade, enquanto nos acautelamos com aquilo que diz a Escritura: “Há caminhos considerados retos pelos homens cujo fim mergulha até o fundo do inferno”, e enquanto, também, nos apavoramos com o que foi dito dos negligentes: “Corromperam-se e tornaram-se abomináveis nos seus prazeres”. Por isso, quando nos achamos diante dos desejos da carne, creiamos que Deus está sempre presente junto a nós, pois disse o Profeta ao Senhor: “Diante de vós está todo o meu desejo”. Devemos, portanto, acautelar-nos contra o mau desejo, porque a morte foi colocada junto à porta do prazer. Sobre isso a Escritura preceitua dizendo: “Não andes atrás de tuas concupiscências”. Logo, se os olhos do Senhor “observam os bons e os maus”, e “o Senhor sempre olha do céu os filhos dos homens para ver se há algum inteligente ou que procura a Deus” e se, pelos anjos que nos foram designados, todas as coisas que fazemos são, cotidianamente, dia e noite, anunciadas ao Senhor, devemos ter cuidado, irmãos, a toda hora, como diz o Profeta no salmo, para que não aconteça que Deus nos veja no momento em que caímos no mal, tornando-nos inúteis, e para que, vindo a poupar-nos nessa ocasião porque é Bom e espera sempre que nos tornemos melhores, não venha a dizer-nos no futuro: “Fizeste isto e calei-me”.”
RSB, Cap. 7, 10-30
Logo com o primeiro grau, S. Bento constrói sua escada da humildade sobre vastíssimo fundamento. Inicia a subida com o temor de Deus, dedicando-lhe um longo estudo. Sempre e em toda a parte, o monge deve viver no temor de Deus: “sempre, em cada hora, em todo lugar”. O temor de Deus tem a feição de hábito, o que é indicado pela acentuação de tempo e lugar. Ele consiste em andar continuamente na presença de Deus. É pois, não tanto um sentimento de temor, quanto uma união com Deus reverentemente sentida. Viver no temor de Deus é tomar a Deus como medida de todas as coisas. Quem não vive na presença de Deus, avalia as próprias ações e omissões conforme a medida deste mundo. Com o fim de aprender esta atitude orientada totalmente para Deus, precisa o monge ter a ideia consciente e atual de sua união espiritual com Deus, e nunca se afastar dela para inspirar-se na vida puramente natural. Tal esquecimento seria descer das coisas divinas para as humanas, das eternas para as temporais. Não se esquece o que se ama. O contraste entre temor de Deus e esquecimento aparece ainda mais nitidamente, quando consideramos o resultado final dessas duas atitudes espirituais. O temor de Deus leva à vida eterna; esquecê-lo converte-se em desprezo de Deus e conduz ao inferno. Temos novamente o sentido perfeito da humildade como união com Deus e do orgulho como afastamento de Deus. Os que já nesta vida possuem o temor, trazem em si a vida eterna; os desprezadores de Deus, ao contrário, têm a reprovação que dá ao conceito do inferno sua nota final. É preciso vigilância por causa dos “pecados e faltas do pensamento, da língua, das mãos, dos pés, da própria vontade, assim como dos desejos da carne”. Deste modo, pois, faz-se alusão aos dois lados da escada: alma e corpo devem estar sujeitos à humildade. Qualquer exercício de humildade é propriamente, domínio de si mesmo, observância da norma prescrita por Deus e aplicação da medida divina à vida natural. Porque tudo se passa aos olhos de Deus, tudo é visto e julgado por Ele. Essa onipresença de Deus é insistentemente lembrada ao monge. “Creia-se que se é visto por Deus, do céu, sempre e a qualquer hora; que nossas ações em qualquer lugar estão sob suas vistas e continuamente são relatadas pelos anjos, como nos mostra o profeta referindo-se à contínua presença de Deus, dizendo: “Deus perscruta o coração e os rins”.
Ainda uma vez à onipresença de Deus é apresentada aos olhos da alma, de modo impressionante. Vemos novamente os anjos a subirem e descerem unindo-nos a Deus dia e noite, como mensageiros entre o céu e a terra. Deus, em sua bondade, ainda nos deixa tempo para nos corrigirmos, mas seu juízo é inevitável. Desde já apresentamo-nos continuamente perante o juiz, para que, calando-se no tempo presente, não pronuncie no final a sentença inapelável. Onde os olhos se voltam para Deus incessantemente, onde se cumpre a sua vontade, aí há humildade. Onde, porém, falta este primeiro grau, o temor de Deus, falta o fundamento de toda a vida monástica. “O temor de Deus é o princípio da sabedoria” (Prov. 1, 7), e a sabedoria é o fruto amadurecido da vida monástica. Como poderá amadurecer faltando- lhe a raiz?
Dom Ildefonso Herwegen, OSB, Sentido e Espírito da Regra de São Bento, pág. 125-126.131
Deixe um comentário