Autor: Helber

  • 32º Dia – Sábado da 4ª Semana da Quaresma

    32º Dia – Sábado da 4ª Semana da Quaresma


    Na hora do Ofício Divino, logo que for ouvido o sinal, deixando tudo que estiver nas mãos, corra-se com toda a pressa, mas com gravidade, para que a escurrilidade não encontre incentivo. Portanto nada se anteponha ao Ofício Divino.”

    O princípio geral que S. Bento propõe como motivo para que os monges acorram apressadamente à oração, tornou-se muito importante para a ordem beneditina, em geral: “Nada se anteponha ao Ofício Divino”. Nada — nem trabalho, nem ato de caridade, nem exercício de piedade, deve ser anteposto ao Ofício Divino. Esta sentença de S. Bento já tinha exemplos na literatura monástica. Macário diz: “Nada deve se antepor à oração” (Reg. 14) e Porcário, abade de Lerin (cerca de 490): “Nada se oponha à oração”. S. Bento, porém, refere-se expressamente ao Ofício Divino. Este tem a primazia sobre todas as outras orações. A Liturgia das Horas constitui o ponto culminante do monaquismo pneumático, enquanto é a forma do “eclesiasticamente monástico”. É a mais alta expressão de sua união com Deus e também a fonte de todos os trabalhos culturais com que à ordem beneditina tão ricamente presenteou o ocidente. No Ofício Divino encontraram base, estímulo e alimento: a arquitetura, o canto, a música, a pintura tanto em obras monumentais como de miniatura, de ourivesaria e finalmente qualquer esforço em prol da ciência. Continuou sempre fecunda a sentença de S. Bento sobre a importância fundamental e inexcedível da Liturgia das Horas. Foi nela que a ordem beneditina, depois das épocas de decadência e desvirtuamento, encontrou o caminho de retorno a seu conteúdo essencial e missão particular e a orientação para suas mais altas finalidades.

    Dom Ildefonso Herwegen, OSB, Sentido e Espírito da Regra de São Bento, pág. 271
  • 31º Dia – Sexta-feira da 4ª Semana da Quaresma

    31º Dia – Sexta-feira da 4ª Semana da Quaresma


    Se queremos sugerir alguma coisa aos homens poderosos, não ousamos fazê-lo a não ser com humildade e reverência; quanto mais não se deverá empregar toda a humildade e pureza de devoção para suplicar ao Senhor Deus de todas as coisas? E saibamos que seremos ouvidos, não com o muito falar, mas com a pureza do coração e a compunção das lágrimas. Por isso, a oração deve ser breve e pura, a não ser que, por ventura, venha a prolongar-se por um afeto de inspiração da graça divina. Em comunidade, porém, que a oração seja bastante abreviada e, dado o sinal pelo superior, levantem-se todos ao mesmo tempo.”

    “Quando vos dirigirdes a Deus, em salmos ou hinos, deveis possuir no coração o que anunciais com a voz”. Com estas palavras que, provavelmente, não eram estranhas a S. Bento, Sto. Agostinho nos explica que nos salmos e hinos da Liturgia das Horas se nos oferece à palavra formada pelo Espírito Santo e que devemos reproduzi-la como se saísse do nosso próprio coração. A Deus sobe a adoração, o louvor, o agradecimento, a homenagem de toda a Igreja representada no coro dos monges e equiparada ao louvor dos anjos. A Igreja, toda embebida da visão de Deus, participa do eterno. Deus mesmo lhe dá a palavra formada pelo Espírito Santo e a essa infunde o monge sua própria alma. Tudo que é terreno e temporal fica excluído. Apesar disso, continuam tanto para a comunidade, como para cada um em particular, a fraqueza, a insuficiência e os sofrimentos da vida mortal; tudo, porém, é incluído na oração pelo homem unido a Deus. Quem primeiro fala é o coração que forma a palavra à qual Deus, pela graça, infunde a vida interior. Assim, ao lado da “Liturgia das Horas” aparece a “supplicatio”, a súplica das próprias necessidades; ao lado do louvor, a prece particular; à oração profética da comunidade segue o pedido de cada um. A esta supplicatio, que nasce talvez de pequenas necessidades, S. Bento empresta, com a introdução do nosso capítulo, grande importância. “Se, quando desejamos pedir alguma coisa aos poderosos, não ousamos fazê-lo senão com humildade e reverência, quanto mais, tratando-se do Senhor Deus do universo. Com toda a humildade e pureza de devoção, temos de dirigir-nos a Ele”. Humildade e reverência diante dos homens são confrontadas com humildade e devoção diante de Deus. Que é o homem, ainda o mais poderoso, diante de Deus, Senhor de todas as coisas? Assim, só podemos, na qualidade de pedintes, aproximar-nos dele assumindo atitude semelhante à que costumamos usar em face dos grandes deste mundo, isto é, com humilde e obsequioso respeito. Eis a razão porque o presente capítulo foi intitulado “Da reverência na oração”. Diante de Deus, essa reverência vai mais longe, transformando-se em abandono de alma, puro e isento de qualquer interesse humano. À reverência religiosa é a “devoção”, a entrega a Deus do que o homem possui de mais Íntimo, não precisando, pois, de muitas palavras. Deus lê em nossas almas. O que Ele espera dos que rezam é a pureza do coração, a sensibilidade da alma, aquela que não fala por palavras, mas por lágrimas: “Mais gemidos que palavras, mais chorar do que falar” (Sto. Agostinho). Evidentemente se trata aqui de outra oração e não da Liturgia das Horas. A oração da comunidade é formada pelo Espírito Santo. Vindo de Deus para a alma e da alma para os lábios, este sopro do Espírito divino é transmitido a Deus como canto e oração, de toda a Igreja que é a portadora do “Lógos”. Os anjos exprimem sua Theo-logia, a visão de Deus, no Trishagion. Na oração individual, porém, é o coração do homem que, por si mesmo, procura a Deus, cada um a seu modo. Trata-se de uma oração particular, mas que não se separa absolutamente da comunidade. A expressão “oração privada” usada na ascese moderna é, pois, inadequada. A palavra “privatus” significa sequestrado. O “homo privatus” é o que foi sequestrado dos negócios públicos ou que se afastou deles livremente. Uma oração privada, que não tenha parte na comunidade, não existe para O cristão. Sua oração é sempre a de um membro do Corpo místico de Cristo, pertencendo assim ao todo. Mesmo no indivíduo, quem reza é o Espírito de Cristo. Pela oração particular, nada se subtrai à Comunhão dos Santos, ao contrário, ela recebe maior riqueza de graças, tomando parte na oração particular de cada um. O capítulo sétimo sobre a humildade, ao mesmo tempo que dispõe o espírito para a Liturgia das Horas, prepara-o igualmente para a oração particular. Enquanto que a humildade inclui algo de negativo, a renúncia de si mesmo, a reverência, tem sentido positivo; é o respeito que, tratando-se de Deus, se torna “devotio”, devoção e espírito de sacrifício. O Senhor de todas as coisas, a razão e o princípio e todo o ser, tem direito, da nossa parte, à esta devoção, independente de tudo que é criado. Na Liturgia das Horas apresenta-se o indivíduo diante do supremo Senhor, fazendo parte da comunidade dos eleitos em união com os anjos que cantam. Na oração particular, sua posição é diferente. Daí o colorido delicado que s. Bento, neste capítulo, dá à humildade: Com toda a humildade. É com toda a humildade possível que a pobre criatura deve estar diante do Onipotente (Pantokrátor), rodeado das constelações do Zodíaco, símbolo de toda à criação, para apresentar-lhe seus pedidos.

    Este encontro, frente a frente, entre a majestade divina e o pobre suplicante apresentando seus assuntos particulares, leva o homem ao abalo interior até à “compunção”. Este termo, ainda não conhecido na época do latim clássico, significa a dor d’alma que nasce do sentimento de culpa e da própria baixeza e conduz ao arrependimento. Em uma alma que se acha sob a impressão da grandeza de Deus, esta dor, oriunda do arrependimento, desfaz-se em lágrimas que, para Deus, têm mais valor do que qualquer palavra. Tal emoção íntima e profunda é um dom do Espírito Santo. O dom das lágrimas era tido em grande estima, já entre os Padres do deserto, como sendo uma prova do espírito de penitência. Ainda hoje se encontra, no Missal Romano, uma oração para pedir o dom das lágrimas. A oração das lágrimas é a última expressão da pureza de coração que é, principalmente por Cassiano, mestre predileto de S. Bento, equiparada à caritas, ao amor de Deus. O homem torna-se prolixo ao falar de assuntos pessoais, o que revela falta de autodomínio e de recolhimento. Acontece isso principalmente com os habitantes de clima quente, cuja vivacidade os leva insensivelmente à loquacidade em suas preces. S. Bento exige, pois, que a oração particular seja curta, só se alongando por inspiração divina. Seu valor depende da pureza com que é feita em união com Deus e livre dos laços terrenos. Com a pureza estamos certos de ser ouvidos. Voltando-se a alma para Deus e abrindo-se ao influxo de sua graça, torna-se capaz de receber o Espírito divino, e assim ser atendida. Não se deve esquecer que, mesmo na oração em que se sentem os efeitos mais profundos da caridade, a intensificação do afeto que se produz então na alma, é um dom de Deus. O homem, por si mesmo, dificilmente pode permanecer em oração muito tempo sem se distrair. Assim os atos de oração devem ser curtos, mas a atitude interior da oração (humildade, reverência, devoção) ser alimentada e desenvolvida e tornar-se uma virtude permanente no monge, como preparação da alma para a ação de Deus, a inspiração da graça divina. O Espírito Santo sempre tem livre acesso nas almas purificadas do pecado e do mundo,

    Em comunidade, o tempo reservado à oração particular deve ser breve. Esta última determinação de S. Bento não se relaciona com a Liturgia das Horas, que já está definitivamente organizado quanto À extensão e ao tempo, mas à oração particular que se realiza depois do canto dos salmos, enquanto todos se acham ainda reunidos no oratório. A oração particular formava a parte final, contemplativa, do ofício divino. Mas nem todos se deixam impressionar no mesmo grau de intensidade pela solene salmodia. Essa não ecoa de igual modo em todos. S. Gregório Magno nos conta como S. Bento, em Subiaco, teve de libertar do influxo do espírito mau a um monge que, durante a oração particular dos irmãos, no fim do Ofício Divino, não permanecia no coro; saía e ficava andando lá fora. Assim, para a oração particular que deve ser feita de joelhos, o abade reservará apenas um curto espaço de tempo, no fim do qual dará um sinal para que todos se levantem ao mesmo tempo. Neste capítulo e no anterior, S. Bento nos revela sua grande estima, tanto pelo ofício divino que se reza em comum, como pela oração feita em particular. Nas últimas disposições do nosso capítulo, nota-nos como ele insiste na seriedade, na sinceridade e elevação de alma quando se trata precisamente da oração particular. Diante de Deus não deve haver nada de falso ou artificial. Nestas determinações sobre a oração particular, S. Bento se inspirou também na liturgia da Igreja. Em certas cerimônias litúrgicas, às vezes, somos convidados à oração particular, mas apenas pouco tempo. Elevar a alma a Deus, dizer uma palavra breve, saída das entranhas da alma, é a todos possível, mas não se pode exigir de ninguém que permaneça longo tempo em oração, a não ser que se queira ficar só em palavras. Todas estas prescrições dadas por S. Bento sobre a oração Inspiram-se no pensamento da “visão da divina majestade”. Dir-se-ia que a piedade paterna desaparece. Entretanto, para que o filho possa encontrar o Pai, mesmo na majestade de Rei, são condições: o respeito aliado à verdade, a humildade unida ao devotamento de coração puro, as lágrimas de uma alma contrita. A bondade acolhedora do Pai é também uma graça do Espírito Santo que se manifesta na inspiração da raça divina. Esta inspiração da graça divina faz que na Liturgia das Horas a alma do monge se assemelhe à palavra do Pai (isto é, ao Verbo). Na oração particular é ela que recebe as palavras do suplicante e as conduz a Deus para receberem a aprovação. Assim, a Liturgia das Horas é como um treino para a oração particular e essa, por sua vez, uma preparação e disposição para a recitação daquele. Tanto o canto dos salmos como a prece particular recebem vida e santidade da graça, produzida pelo sopro do Espírito Santo.

    A doutrina de S. Bento sobre a oração assinala um dos pontos culminantes da Santa Regra. Nos ensinamentos relativos à oração está expressa a essência e o sentido do estado monástico. Particularmente característica é a última parte do capítulo vigésimo. A primazia cabe aqui incondicionalmente à comunidade e não ao indivíduo, mesmo ao exercer esse a atividade mais sublime de seu espírito. Dado o sinal, levantam-se todos e ao mesmo tempo e até aqueles que tenham recebido maiores graças, devem interromper a oração para, formando uma unidade com os menos privilegiados, acompanharem o ritmo da vida comum.

    Dom Ildefonso Herwegen, OSB, Sentido e Espírito da Regra de São Bento, pág. 188-193
  • 30º Dia – Quinta-feira da 4ª Semana da Quaresma

    30º Dia – Quinta-feira da 4ª Semana da Quaresma


    Cremos estar em toda parte a presença divina e que “os olhos do Senhor vêem em todo lugar os bons e os maus”. Creiamos nisso principalmente e sem dúvida alguma, quando estamos presentes ao Ofício Divino. Lembremo-nos, pois, sempre, do que diz o Profeta: “Servi ao Senhor no temor”. E também: “Salmodiai sabiamente”. E ainda: “Cantar-vos-ei em face dos anjos”. Consideremos, pois, de que maneira cumpre estar na presença da Divindade e de seus anjos; e tal seja a nossa presença na salmodia, que nossa mente concorde com nossa voz.”

    “Os olhos do Senhor estão postados, em toda parte, sobre os bons e os maus”. Esta citação da Sagrada Escritura que aqui figura como uma introdução geral, estabelece relação imediata com o primeiro grau da humildade onde aparece a mesma citação referindo-se aos anjos que, noite e dia, anunciam ao Senhor nossos trabalhos e ações (cap. 7).

    Se todas as nossas ações devem realizar-se na presença de Deus, sob a constante vigilância dos anjos, quanto mais quando entramos em imediata relação com Deus! A consciência de estarmos na presença de Deus e de seus anjos deve então ser perfeita. “Estamos a realizar o ofício divino”. E o Ofício Divino é o trabalho específico do monge, “o fardo da servidão”, a maior obra que pode realizar. Para esse trabalho devem convergir todas as energias. Nele se devem concentrar completamente todos os esforços do homem interior. Deste sentimento de obrigação do ofício, nasceu também o cabeçalho do capítulo com a indicação do conteúdo: Da disciplina na recitação dos Salmos.

    Desconheceria a intenção de S. Bento, quem quisesse interpretar este título apenas como a atitude que os monges devem observar durante a recitação dos salmos. O conceito que o termo “disciplina” exprime é genuinamente romano, e significa a disciplina proveniente da educação, a manifestação exterior de um recolhimento interior das potências da alma.

    Ao “em toda parte” contrapõe-se o “Ofício Divino” como sendo um grau elevado da presença divina. É certo que Deus está em toda parte e em todo lugar pode ser adorado, pois traz o universo em suas mãos. Mas a Liturgia das Horas celebrado em um lugar sagrado eleva o homem acima do “Cosmos” e o transporta para a esfera do supra terreno, do eterno, do céu que é representado pelo Oratório, imagem da cidade santa, da nova Jerusalém que baixou do céu (Ap 21, 2). O verdadeiro agente no culto é Deus, nós somos apenas seus instrumentos e órgãos. Pela graça, Ele desce para ficar a nosso lado, e nós subimos para nos unirmos à Ele. Por esta presença de Deus, a qual se realiza principalmente no ofício divino, devemos crer firmemente que seus olhos estão pousados em nossa alma para ver se cantamos seus louvores com os corações puros. Estamos unidos a Deus, tanto pelo Ofício Divino em nós como pelo nosso ofício a Deus.

    S. Bento mostra pela Sagrada Escritura como o monge alcança, na Liturgia das Horas, esta elevação para as alturas, na união com Deus: “Servi ao Senhor no temor” (Sl 2, 11). A primeira condição do verdadeiro “Ofício Divino” está no primeiro grau da humildade, é o temor de Deus, o sentimento da grandeza e majestade de Deus e a consciência da própria fraqueza e insuficiência. O temor de Deus é o princípio da sabedoria, daí o “Salmodiai sabiamente” (Sl 46, 8). A reverência diante de Deus alarga o espírito e o coração para a plenitude da caridade divina. “Ser sábio” significa “ter sabor”, “saborear”. Seu sentido aqui é, pois: tornar-se partícipe da alegria da plenitude divina. A salmodia é o canto, o júbilo, a alegria, o louvor da glória divina: “Nós vos damos graças por vossa imensa glória”. Sabedoria quer dizer luz divina em nós, inspiração do Espírito Santo. O canto dos salmos é, assim, uma oração pneumática, profética, em que a Esposa de Cristo se desprende de todo o peso e vínculo terreno. Toda a Liturgia das Horas é, em essência, a expressão de um santo entusiasmo, uma imagem prática da união com Deus no céu. Por este motivo cantamos: “Cantar-vos-ei em face dos anjos” (Sl 137, 2). Tomando parte nos coros angélicos afastados das coisas terrenas, oferecemos a Deus nosso hino de louvor. Assim como o “Santo, Santo, Santo” cantado pelos anjos, vem da visão beatífica que estes espíritos celestes gozam, assim também nosso louvor divino nasce do conhecimento pela fé. A salmodia é a mais perfeita manifestação da vida angélica dos monges. Enquanto é possível às criaturas mortais, participam eles aqui, perfeitamente, do louvor dos anjos.

    O ofício divino no temor, a conversão interior do monge pela sabedoria de Deus e sua participação no louvor dos anjos, eis os três degraus pelos quais o coro monástico sobe a Deus, antecipando na terra a adoração tributada a Deus no céu.

    O coro dos monges é associado ao coro dos anjos. Existe aqui mais do que à união puramente intencional e ideal de dois mundos. Toda a liturgia participa da imutabilidade da vida eterna, pairando acima dos acontecimentos do mundo. Ela canta o Aleluia triunfalmente em meio às tristezas, angústias e confusões deste mundo. Os monges, os portadores da vida angélica, já se acham em uma comunhão viva com os bem-aventurados que cantam os louvores divinos; estão na “presença de Deus e de seus anjos”. Esta ideia provém da tradição monástica oriental e significa muito mais do que uma simples presença intencional de Deus; revela o caráter de mistério do culto litúrgico. Do tempo de S. Bento temos, em Ravena e em outros lugares da Itália, pinturas bizantinas representando o “Kyrios”, com majestade sublime sentado num trono, rodeado de anjos. Estes quadros queriam representar o Senhor de todas as coisas em companhia dos anjos, portanto, toda a glória celeste presente ao ofício divino. Isso aparece, de modo particular, nos mosaicos de Ravena, nas procissões de ofertório e de homenagem dos santos confessores e virgens, na igreja de S. Apollinare Nuovo e na abside de S. Vitale. O que essas pinturas representam realiza-se entre os fiéis sob os véus do mistério.

    A expressão “na presença da Divindade” significa uma divina presença especialmente abundante de graças vindas de Deus. Por meio dela, a comunidade monástica, que é semelhante aos anjos, eleva-se ao coro dos anjos que salmodiam. A união com Deus assim obtida tem um caráter quase sacramental. Isso é confirmado também por Victor Warnach, na explicação que dá ao final do nosso capítulo: “e tal seja a nossa presença na salmodia, que nossa mente concorde com nossa voz”. “Mente” significa o espírito do homem, feito à imagem do “Lógos”, a parte de nosso ser que se relaciona com o céu. “Voz” não é apenas nossa voz que emprestamos ao espírito, a vibração de nosso espírito na terra, mas, em primeiro lugar, a palavra sagrada pronunciada no ofício divino. Cabe a nosso espírito repensar os inesgotáveis pensamentos que Deus, mediante seu Espírito Santo, depositou nas palavras dos salmos, hinos, e lições. Mais do que a atenção psicológica ou a compreensão filológica dos textos sagrados importa a S. Bento a união, segundo seu ser inteiro, do “homem interior” com o Verbo divino, a ponto de formar um só coração com Ele (“concorde”). A voz implica a atualização do “Lógos” eterno como sendo o protótipo de todo o cristianismo em sua essência e vida, isto é, o próprio Cristo que há de tomar forma em nós (Gal. 4, 19). Não se trata, pois, de uma adaptação da mente à nossa voz, ou de cantar os salmos com atenção e compreensão, ainda que tudo isso, como condição indispensável, esteja incluído no pensamento do Santo Legislador. Mas o sentido profundo dessa sentença da Santa Regra consiste na união viva do nosso ser interior, pneumático, com o “Lógos” que se manifesta na palavra sagrada. O verdadeiro louvor divino não deve ser apenas um exercício da nossa voz, mas, conforme sua natureza mais íntima, uma obra realizada pelo homem remido pela graça de Cristo.

    Se S. Bento lembra aos monges que devem cantar os salmos “na presença da Divindade e de seus anjos”, é que exige deles o máximo de vida interior. Mas Deus lhes infunde ao mesmo tempo o Espírito Santo, esta força vivificadora, sem a qual nosso Ofício Divino seria simples presunção humana. Graças a este mesmo Espírito divino, o monge se torna igual aos anjos, criaturas espirituais, realizando na Igreja militante o sublime louvor que a Igreja triunfante canta eternamente no céu. Todos os atos da Igreja, também seu louvor, possuem alguma coisa de nupcial: “Cantar é próprio de quem ama”, e com isso alguma coisa do anseio e espera, que só se realiza com a presença do Esposo ou “kyrios”. É o sentido da “adoração em espírito (Pneuma) e verdade (Lógos)” (Jo. 4, 23). Os verdadeiros adoradores são cheios do Espírito de Deus, a fim de que possam louvar o “Lógos” divino com as vozes que eles emprestam à Esposa. Assim, neste pequeno capítulo, S. Bento tentou explicar o que há de mais profundo na Liturgia das Horas, aquilo que lhe constitui a essência. Liturgia das Horas é o encontro de Deus com a comunidade monástica, através da palavra divina pronunciada pelos lábios da Igreja. É um canto e uma oração da comunidade intimamente relacionado com a “ação de graças” sacramental. Assim como a Eucaristia é nossa participação no Sacrifício de Cristo e deste modo na caridade do Kyrios, assim o Ofício Divino, como Doxologia, é o retorno para o próprio Deus, em união com os anjos e os santos, daquela glória divina que nos foi dada pelo Espírito. O Ofício Divino participa do mistério da união sacramental com Deus. É uma imagem do céu, que é o lugar da união inamissível com Deus e do louvor sem fim. “Aí celebraremos e veremos, veremos e amaremos, amaremos e louvaremos. Eis o que será no fim sem fim” (Sto. Agostinho).

    Dom Ildefonso Herwegen, OSB, Sentido e Espírito da Regra de São Bento, pág. 183-187
  • 29º Dia – Quarta-feira da 4ª Semana da Quaresma

    29º Dia – Quarta-feira da 4ª Semana da Quaresma


    Diz o Profeta: “Louvei-vos sete vezes por dia”. Assim, também nós realizaremos esse sagrado número, se, por ocasião das Matinas, Prima, Terça, Sexta, Noa, Vésperas e Completas, cumprirmos os deveres da nossa servidão; porque foi destas Horas do dia que ele disse: “Louvei-vos sete vezes por dia”. Quanto às Vigílias noturnas, diz da mesma forma o mesmo profeta: “Levantava-me no meio da noite para louvar-vos”. Rendamos, portanto, nessas horas, louvores ao nosso Criador “sobre os juízos da sua justiça”, isto é, nas Matinas, Prima, Terça, Sexta, Noa, Vésperas e Completas; e à noite, levantemo-nos para louvá-Lo.”

    A unidade formada pelo abade e pelos monges, revelada na obediência, no ensino do mestre, no aprendizado dos discípulos e no esforço humilde, tem seu próximo e último fim em Deus. Enquanto é corpus 1monasterii, sua vida e respiração realizam-se em Deus e para Deus por meio da oração que, sendo a oração da comunidade, não pode ser senão o solene sacrifício de louvor da Igreja. Isso, no tempo de S. Bento, era uma coisa natural entre monges. Este serviço de oração, consagrado a Deus, é para S. Bento o ponto culminante de todas as manifestações de vida de seus monges. Dele diz S. Bento: “nada se anteponha”; o que, de resto, só exige em relação a Cristo. Assim, S. Bento traça todas as outras disposições referentes à vida monástica, tomando por centro o Opus Dei (Liturgia das Horas). Toda a vida monástica está orientada para o louvor divino, seja como preparação ou realização do mesmo. Este louvor é de tal modo o centro de toda a Regra que, graças ao sentimento de vida latente na comunidade, não faz falta uma introdução especial a este grupo de capítulos dedicados ao Opus Dei.

    Pela prática das virtudes e, principalmente, pela entrega total de si mesmo a Deus na humildade, deve o monge tornar-se apto a rivalizar com os anjos no louvor de Deus. A observância dos preceitos ascéticos e disciplinares da vida monástica deve ser o fundamento do Opus Dei, deve conservá-lo constantemente vivo para ser fecundado pela graça do Espírito Santo e contribuir, por este meio, para a solidez e aprofundamento pneumáticos. Com razão, pois, K. Thieme dá, em relação a outras formas de monaquismo, a nota característica da Regra de S. Bento do seguinte modo: “Não a ascese, como fim em si mesmo, mas o Opus Dei, o louvor divino perfeito segundo a liturgia, pareceu-lhe ser o sentido e o centro da vida claustral; apenas como um meio para o fim, a Regra ensina uma mortificação sóbria, comedida, que não abrange toda a vida física e psicológica, mas somente aquilo que impede uma entrega total de si mesmo ao serviço de Deus”.

     “Sete vezes ao dia canto os vossos louvores”. “deveres da nossa servidão”, nossas orações obrigatórias nas diversas horas do dia. O termo “servidão”, não deve ser tomado aqui na acepção de servidão de escravo, mas no sentido de um trabalho que, por profissão, como finalidade de nossa vida, prestamos a Deus. Por duas vezes se acentua que, já em virtude da palavra profética do salmista (Sl 118, 164), o número 7 das horas canônicas é santo. Mas Davi guardou também as vigílias noturnas, pois diz no citado salmo: “No meio da noite, levanto-me para Vos louvar” (S. 118, 62). A estas mesmas horas, já antes de Cristo consagradas pelo culto, os monges devem oferecer a seu Criador o louvor dos juízos de sua justiça. Há, neste modo de se expressar, um reflexo da ideia da parusia. Deve-se notar também que o olhar está voltado para cima, para Deus Criador. Nestas horas canônicas queremos louvar a Deus, Criador do tempo, do dia, da noite, e do curso das horas. Vemos novamente como o “Cosmos”, a criação, tudo é introduzido no ritmo de oração da vida sobrenatural. De um lado são novamente santificadas as criaturas, a saber, o tempo e o espaço, os seres dotados de vida e os elementos anorgânicos, enquanto se relacionam com os cantores do louvor divino. De outro lado a própria criação, já por sua simples existência, canta igualmente o louvor de Deus, como se vê frequentemente nos salmos e no canto dos três jovens na fornalha. A justiça divina e a harmonia de suas obras manifestam-se na criação, onde tudo se faz segundo a medida, número e peso. Assim, também uma harmoniosa “confissão” à grandeza e majestade do criador do mundo deve ressoar através das horas canônicas.

    Dom Ildefonso Herwegen, OSB, Sentido e Espírito da Regra de São Bento, pág. 147-148.176
  • 28º Dia – Terça-feira da 4ª Semana da Quaresma

    28º Dia – Terça-feira da 4ª Semana da Quaresma


    Tendo, por conseguinte, subido todos esses degraus da humildade, o monge atingirá logo, aquela caridade de Deus, que, quando perfeita, afasta o temor; por meio dela tudo o que observava antes não sem medo começará a realizar sem nenhum labor, como que naturalmente, pelo costume, não mais por temor do inferno, mas por amor de Cristo, pelo próprio costume bom e pela deleitação das virtudes. Eis o que, no seu operário, já purificado dos vícios e pecados, se dignará o Senhor manifestar por meio do Espírito Santo.”

    A “parusia” é apenas um objeto daquele temor que aspira ao amor libertador de Deus. Nessa direção positiva aponta o epílogo, levando ao apogeu, toda a doutrina de S. Bento sobre a humildade. “Tendo pois subido todos esses graus da humildade, o monge chegará imediatamente àquele amor de Deus, que, sendo perfeito, lança fora o temor (1 Jo. 4, 18), de modo que, graças a ele, tudo quanto antes não fazia senão com temor, começa a observar sem trabalho, como naturalmente, por hábito e não por medo do inferno, mas por amor a Cristo, por bom costume e satisfação na virtude”. O temor do juízo e do inferno se transforma no amor a Cristo e na satisfação da virtude. Assim já se atribui a Sto. Antão, primeiro Padre do deserto, a bela sentença: “Já não temo a Deus, mas amo-O; o amor lança fora o temor”. Com isso conseguiu-se agora o último passo para a liberdade interior, desfez-se o derradeiro laço do próprio eu, realizou-se a completa entrega de si mesmo na caridade. Está vencida a timidez que no iniciante impedia o sacrifício de si mesmo. O devotamento total à causa de Deus tornou-se para o monge uma segunda natureza. A virtude com suas exigências já não lhe é um fardo penoso que só aceita forçado pelo medo do juízo e do castigo; tem agora o sentido da alegria e felicidade, porque é o amor que o arrasta. Como no trecho final do prólogo à Regra, também aqui revela S. Bento, de novo, a meta totalmente positiva do perfeito amor de Deus. O princípio do temor de Deus, a obediência, a humildade interior do coração e à humilde atitude exterior, são todas preparações e pressupostos necessários para conduzir ao sublime escopo do amor. O «pneumatikós» aquele que está repleto do espírito de Deus, manifestará nas palavras e nas obras, a perfeição de sua união com Deus; é ele o verdadeiro “sapiens”, o «perfeito»,

    Em termos de ritmo entusiástico dá o epílogo à doutrina sobre à humildade um fecho trinitário: o monge é conduzido ao amor de Deus através do amor de Cristo; por meio do Espírito Santo manifestará o Senhor isso na vida do monge, rica de virtudes e purificada de todo o mal. Quanto mais pura se tornar a alma, tanto mais capaz será de receber em si o Espírito Santo e de ser portadora do sobrenatural, do “Pneuma”. O caminho para o monge chegar a Deus consiste, pois, não somente no aperfeiçoamento moral, mas também na perfeição ontológica, no amor de Deus Pai por meio do amor de Cristo, o Filho, na graça do Espírito Santo. Assim toda a família monástica, em todo o seu ser e agir entra em contato com a vida divina interna da Santíssima Trindade, união do nosso ser com o Pai no amor de Deus; do nosso agir com o Filho feito homem no amor de Cristo; mas tudo se opera e manifesta em nós por meio da virtude do Espírito Santo.

    Os graus da humildade citados, não significam fases de progresso da vida interior, separadas quanto ao tempo e a serem percorridas uma depois da outra. É uma divisão teórica, por motivos metódicos e pedagógicos, e não pretende retratar a vida em sua manifestação concreta. Na vida prática, os graus constituem uma grande unidade, a humildade. Ela se manifesta como um todo, mas, para alcançar uma atitude espiritual completa e equilibrada, tanto interior como exterior, requer ora aqui ora ali, intervenção mais enérgica.

    Esta visão ampla com que S. Bento encerra sua doutrina moral, como provam numerosas passagens dos salmos, é fruto de sua oração na Liturgia das Horas e de seu recolhimento na meditação. Por isso reproduz, em tudo, a antiquíssima doutrina dos patriarcas dos monges com a frescura de uma atualidade vivida.

    O monge, purificado de pecados e faltas, repleto do perfeito amor de Deus, aparece no final do capítulo sétimo, como o portador do Espírito Santo, considerado apto a realizar o mais sublime múnus de vida “angélica”, a Liturgia das Horas.

    Dom Ildefonso Herwegen, OSB, Sentido e Espírito da Regra de São Bento, pág. 141-145
  • 27º Dia – Segunda-feira da 4ª Semana da Quaresma

    27º Dia – Segunda-feira da 4ª Semana da Quaresma


    O duodécimo grau da humildade consiste em que não só no coração tenha o monge a humildade, mas a deixe transparecer sempre, no próprio corpo, aos que o vêem, isto é, que no ofício divino, no oratório, no mosteiro, na horta, quando em caminho, no campo ou onde quer que esteja, sentado, andando ou em pé, tenha sempre a cabeça inclinada, os olhos fixos no chão, considerando-se a cada momento culpado de seus pecados, tenha-se já como presente diante do tremendo juízo de Deus, dizendo-se a si mesmo, no coração, aquilo que aquele publicano do Evangelho disse, com os olhos pregados no chão: “Senhor, não sou digno, eu pecador, de levantar os olhos aos céus”. E ainda, com o Profeta: “Estou completamente curvado e humilhado”.

    A “sabedoria” que acabamos de considerar como sendo o fecho de uma linha ascendente, junta S. Bento ainda um duodécimo grau, mas com esse faz, apenas aparecer exteriormente o resultado final e o efeito total da verdadeira humildade do coração. O sentimento humilde não permanecerá recôndito no coração. Forçosamente transparecerá na atitude exterior. S. Bento esclarece isso detalhadamente segundo o seu costume de ilustrar tudo com casos concretos. “O monge não deve trazer a humildade só no coração, mas há de fazê-la conhecida por sua atitude exterior, a saber: estando no Ofício divino, no oratório, no mosteiro, no jardim, em viagem, no campo e em qualquer lugar, sentado, andando ou em pé, deve ter sempre a cabeça baixa, os olhos voltados para o chão”. O que convêm durante a celebração da Liturgia das Horas ou quando se reza fora do coro, no santuário da basílica ou além de suas portas, nos aposentos do mosteiro ou em seus jardins, convém também fora do recinto monástico, nas vias públicas e no campo durante o trabalho e em quaisquer possíveis circunstâncias da vida. Para o monge a oração e o trabalho, a religião e a cultura devem, pois, estar dominados por uma contínua união com Deus, na humildade. Muito além da vida interior, muito além de tudo que se relacione com a alma e com o espírito, a presença divina deve ser levada a todos os recantos em que o monge exerce suas atividades, desde o Altar (Liturgia) até ao campo, última periferia de seus trabalhos. “A inclinação do corpo é o reflexo vivo da humildade do coração. Todo homem, de fato, reflete em sua atitude exterior o estado da alma, mormente em suas relações com Deus. Ao se ajoelhar na igreja, ao juntar as mãos, em pé ou andando, seu corpo e seus gestos são sempre um espelho da alma. Todo o simbolismo dos atos litúrgicos da Igreja está sob o signo desta harmonia do corpo e da alma, à procura de uma expressão”. Parece exigência estranha em S. Bento, querer ele que o monge a cada instante “se reconheça culpado em virtude de seus pecados, e já se julgue diante do tremendo juízo, repetindo sempre em seu coração, o que o publicano do Evangelho, com os olhos pregados no chão, dizia: “Senhor, eu não sou digno de levantar os olhos para o céu” (Lc. 18, 13) e, com o profeta: “Encurvado e humilhado estou sempre” (Sl 37, 9).

    Devemos considerar aqui dois pontos de vista. O primeiro é que a atitude do publicano descrita pelo Senhor no Evangelho é o oposto da do fariseu que rezava no mesmo templo. O monge, apesar do bem que reconheça em si, por sua vida e aspirações, jamais deve ter os ares do fariseu, mas imitar os do publicano reconhecendo a própria indignidade. O segundo ponto a ser considerado é que S. Bento transmite, aqui, a seus discípulos, a mesma doutrina dos antigos monges. Assim, entre os monges do deserto, as palavras do publicano eram uma espécie de senha. De fato, nos “Apoftegmas”, o abade Amona diz: “Senta-te na cela e come diariamente um pouco, tendo continuamente no coração as palavras do publicano, e poderás ser salvo”. O monge deve manter os olhos voltados para o chão com o fim de se conservar concentrado interiormente. “Quando Silvano era forçado a sair de sua cela, cobria a face com a cogula, dizendo: “Para que quero eu ver esta luz que pertence só a este tempo e não tem nenhuma utilidade”! Este mesmo monge cobria os olhos para que seu espírito não fosse desviado de seu trabalho (espiritual). O recolhimento interior assim como também a consciência da própria culpa tem, na Regra, um sentido escatológico e sabor do cristianismo dos primeiros tempos. “O monge já se julga colocado diante do tremendo juízo de Deus”. Nos “Apoftegmas” se diz: “A cada hora o homem tem de se imaginar colocado perante o tremendo juízo de Deus”, tem de conservar em si, sempre vivo, o temor do juízo. De modo comovente manifestou-se este temor de Deus pela boca de Arsênio moribundo: “Em verdade, o temor que tenho nesta hora está em mim desde o tempo em que me tornei monge”.

    Dom Ildefonso Herwegen, OSB, Sentido e Espírito da Regra de São Bento, pág. 140-142
  • 26º Dia – 4º Domingo da Quaresma

    26º Dia – 4º Domingo da Quaresma


    O undécimo grau da humildade consiste em, quando falar, fazê-lo o monge suavemente e sem riso, humildemente e com gravidade, com poucas e razoáveis palavras e não em alta voz, conforme o que está escrito: “O sábio manifesta-se com poucas palavras”.

    Importa que o autodomínio que o monge deve ter ao manifestar a disposição da alma, se estenda a todo comércio com os outros homens. “Há de ser moderado e parco no rir, humilde e grave, não deve pronunciar senão palavras sensatas, sem produzir ruído com a própria voz, assim como está escrito: “o sábio se reconhece pela sobriedade das palavras”. Essa última citação dá ao undécimo grau sua nota característica. À expressão “está escrito” não se refere aqui à Sagrada Escritura, mas de uma antiga coleção de sentenças, traduzidas do grego por Rufino e atribuídas ao Papa Sixto II por seu autor. Citando esta passagem, como resumo do 11º grau da humildade, quer assinalar a ideal da perfeição, o vir sapiens, como era conhecido dos romanos através da tradição dos estoicos. Esta sentença de Sixto contém um juízo meramente natural. Sabedoria é a união da inteligência e da vontade, do espírito e do coração; quer dizer um conhecimento repassado, impregnado do ardor do coração. Profunda visão acompanhada de sentimento, significa, por conseguinte, primeiramente uma perfeição ética, puramente natural. Esta versão é confirmada pela exigência da gravidade, uma atitude digna genuinamente romana, que nasce da íntima posse de si mesmo, e de uma liberdade natural que não deixa transparecer nada de mesquinho e pouco varonil e à qual, por isso, não assenta o riso. Consequentemente as poucas palavras devem ser “razoáveis”, sábias, pensadas, simples. A maneira de se apresentar, caracterizada pela dignidade e seriedade, exige, naturalmente, um tom de voz comedido, retraído, que não se fale alto, sem moderação. O décimo primeiro grau distingue, pois, de maneira geral, o monge que, como um sábio, está acima das contingências da vida e, firmado na paz interior, domina completamente sua língua. Mas, a sabedoria só pode imperar e agir na alma do monge, quando pela graça for elevada à esfera sobrenatural da fé e da união com Deus. Somente assim poder-se-á colocar a sabedoria no mesmo plano da humildade, da qual ela é a coroa.

    Dom Ildefonso Herwegen, OSB, Sentido e Espírito da Regra de São Bento, pág. 139-140
  • 25º Dia – Sábado da 3ª Semana da Quaresma

    25º Dia – Sábado da 3ª Semana da Quaresma


    O décimo grau da humildade consiste em que não seja o monge fácil e pronto ao riso, porque está escrito: “O estulto eleva sua voz quando ri”.

    A atitude de domínio sobre si mesmo assim iniciada produz como fruto a seriedade e a gravidade do caráter, postas em relevo no décimo grau. O monge não ria facilmente, pois está escrito: “o néscio levanta a voz quando ri” (Eclo 21, 23). Não se condena com isso toda espécie de riso. Apenas, o monge não deve ser “fácil e pronto para o riso”, manifestando desse modo um caráter superficial e frívolo, que de modo algum corresponde à seriedade da vida monástica. Por isso também os antigos Padres já baniram o riso do meio de suas fileiras, a ponto de os demônios procurarem causar-lhes tentações de riso.

    Dom Ildefonso Herwegen, OSB, Sentido e Espírito da Regra de São Bento, pág. 139
  • 24º Dia – Sexta-feira da 3ª Semana da Quaresma

    24º Dia – Sexta-feira da 3ª Semana da Quaresma


    O nono grau da humildade consiste em que o monge negue o falar a sua língua, entregando-se ao silêncio; nada diga, até que seja interrogado, pois mostra a Escritura que “no muito falar não se foge ao pecado” e que “o homem que fala muito não se encaminhará bem sobre a terra”.

    Mais estreitamente do que à primeira vista se julga, também o nono grau da humildade se prende à tradição do antigo monaquismo. Segundo esse, exige-se que o monge prive sua língua de falar e, guardando o silêncio, não fale antes de ser interrogado. Pois a Sagrada Escritura diz que “falando muito não se evita o pecado” (Prov. 10, 19) e que “o homem falador não trilhará bom caminho na terra” (Sl 139, 12). Não se trata da conversa de todos os dias, necessária, durante o trabalho e a convivência, mas dos colóquios doutrinários e edificantes que revelam o interior da alma. Entre os Padres corria como lei não escrita que ninguém, por própria iniciativa, devia proferir uma sentença, ninguém devia dar um rhêma *. O Padre só dava uma sentença, espiritual, um “lógion” sendo interrogado ou pedido. E, muitas vezes, a resposta exigia dias. Unicamente sob este ponto de vista, historicamente tradicional, é que se pode considerar tão alto grau de virtude, guardar o silêncio até ser interrogado. Essa concepção do silêncio como uma espera da iluminação sobrenatural, influirá, naturalmente, sobre todo o falar no mosteiro. Ninguém se manifeste a não ser por impulso do Espírito Santo. Isso significa para a vida monástica: “habitare secum”, santo silêncio e conversa santa.

    * Rhema ou Lógion significava, na literatura monástica grega, uma sentença breve e incisiva, proferida pelos anciãos a fim de orientar os discípulos. Tais Sentenças eram frequentemente solicitadas e muito estimadas pelos monges, pois ôstes as julgavam como que provindas do Espírito Santo. (N. d. T.)

    Dom Ildefonso Herwegen, OSB, Sentido e Espírito da Regra de São Bento, pág. 138-139

  • 23º Dia – Quinta-feira da 3ª Semana da Quaresma

    23º Dia – Quinta-feira da 3ª Semana da Quaresma


    O oitavo grau da humildade consiste em que só faça o monge o que lhe exortam a Regra comum do mosteiro e os exemplos de seus maiores.”

    No oitavo grau, S. Bento supõe que o monge não faça senão o que estiver de acordo com a Regra comum do mosteiro e com o exemplo dos mais velhos. Nenhum dos graus da humildade parece ser tão simples na teoria e na prática como esse. Contudo, há nele muitos ensinamentos e muitas exigências. O monge não deve fazer coisa alguma que esteja fora da Regra e do exemplo; por conseguinte temos um limite. S. Bento pressupõe positivamente, que a Regra e o exemplo sejam observados do melhor modo possível. A observância da Regra, que tem igual valor para todos é a lei básica da existência dos mosteiros. O exemplo dos mais velhos, ao contrário, parece antes ser um estímulo subjetivo, sem obrigatoriedade. E, contudo, toda a pedagogia dos antigos — já fizemos menção disto — baseava-se no exemplo e na imitação. Também para o Cristianismo, a imitação de Cristo tornou-se princípio educacional. Com a exortação “Sede meus imitadores, como também eu sou de Cristo” (4, 16; 11, 1) que S. Paulo repete por duas vezes na primeira Epístola aos Coríntios, o que ele quer é educar, como mestre, os seus discípulos, segundo o próprio modelo, de tal modo que se conformem ao exemplar do mestre. Ser imitador de Cristo foi também, desde o início, o sentido do estado monástico, Por isso os antigos monges são os modelos dos mais novos. As relações de mestre e discípulo consistem nesta reciprocidade. O que os anacoretas tinham começado, os cenobitas continuaram, apesar de colocarem a Regra comum em primeiro plano. Mas para esses também, a Regra escrita seria letra morta se não fosse interpretada pelo exemplo da vida. Esta vida então nos é apresentada no exemplo dos monges mais idosos. A Regra que foi vivida pelos nossos antepassados obriga-nos à imitação, ainda que em sua forma concreta dependa das contingências, pessoais, locais e materiais. Em todo caso, e isso resume o oitavo grau, seria uma falta contra a humildade quisesse cada monge, por própria iniciativa, levado por um suposto conhecimento melhor das coisas ou um pretenso desejo maior de virtude, agir de outro modo que não o exigido pela Regra e pelo exemplo. Caso a observância da Regra perca, na vida cotidiana, com os mais velhos, a seriedade e o rigor, é dever do abade intervir em primeiro lugar. Particularmente, poderá cada um dar também conselhos e impulsos para uma forma perfeita de vida. Jamais, porém, se deverá deixar que cada um siga seu próprio caminho, na suposição de aspirações mais elevadas ou de uma fidelidade maior à Regra.

    Dom Ildefonso Herwegen, OSB, Sentido e Espírito da Regra de São Bento, pág. 137-138