“Se queremos sugerir alguma coisa aos homens poderosos, não ousamos fazê-lo a não ser com humildade e reverência; quanto mais não se deverá empregar toda a humildade e pureza de devoção para suplicar ao Senhor Deus de todas as coisas? E saibamos que seremos ouvidos, não com o muito falar, mas com a pureza do coração e a compunção das lágrimas. Por isso, a oração deve ser breve e pura, a não ser que, por ventura, venha a prolongar-se por um afeto de inspiração da graça divina. Em comunidade, porém, que a oração seja bastante abreviada e, dado o sinal pelo superior, levantem-se todos ao mesmo tempo.”
RSB, Cap. 20
“Quando vos dirigirdes a Deus, em salmos ou hinos, deveis possuir no coração o que anunciais com a voz”. Com estas palavras que, provavelmente, não eram estranhas a S. Bento, Sto. Agostinho nos explica que nos salmos e hinos da Liturgia das Horas se nos oferece à palavra formada pelo Espírito Santo e que devemos reproduzi-la como se saísse do nosso próprio coração. A Deus sobe a adoração, o louvor, o agradecimento, a homenagem de toda a Igreja representada no coro dos monges e equiparada ao louvor dos anjos. A Igreja, toda embebida da visão de Deus, participa do eterno. Deus mesmo lhe dá a palavra formada pelo Espírito Santo e a essa infunde o monge sua própria alma. Tudo que é terreno e temporal fica excluído. Apesar disso, continuam tanto para a comunidade, como para cada um em particular, a fraqueza, a insuficiência e os sofrimentos da vida mortal; tudo, porém, é incluído na oração pelo homem unido a Deus. Quem primeiro fala é o coração que forma a palavra à qual Deus, pela graça, infunde a vida interior. Assim, ao lado da “Liturgia das Horas” aparece a “supplicatio”, a súplica das próprias necessidades; ao lado do louvor, a prece particular; à oração profética da comunidade segue o pedido de cada um. A esta supplicatio, que nasce talvez de pequenas necessidades, S. Bento empresta, com a introdução do nosso capítulo, grande importância. “Se, quando desejamos pedir alguma coisa aos poderosos, não ousamos fazê-lo senão com humildade e reverência, quanto mais, tratando-se do Senhor Deus do universo. Com toda a humildade e pureza de devoção, temos de dirigir-nos a Ele”. Humildade e reverência diante dos homens são confrontadas com humildade e devoção diante de Deus. Que é o homem, ainda o mais poderoso, diante de Deus, Senhor de todas as coisas? Assim, só podemos, na qualidade de pedintes, aproximar-nos dele assumindo atitude semelhante à que costumamos usar em face dos grandes deste mundo, isto é, com humilde e obsequioso respeito. Eis a razão porque o presente capítulo foi intitulado “Da reverência na oração”. Diante de Deus, essa reverência vai mais longe, transformando-se em abandono de alma, puro e isento de qualquer interesse humano. À reverência religiosa é a “devoção”, a entrega a Deus do que o homem possui de mais Íntimo, não precisando, pois, de muitas palavras. Deus lê em nossas almas. O que Ele espera dos que rezam é a pureza do coração, a sensibilidade da alma, aquela que não fala por palavras, mas por lágrimas: “Mais gemidos que palavras, mais chorar do que falar” (Sto. Agostinho). Evidentemente se trata aqui de outra oração e não da Liturgia das Horas. A oração da comunidade é formada pelo Espírito Santo. Vindo de Deus para a alma e da alma para os lábios, este sopro do Espírito divino é transmitido a Deus como canto e oração, de toda a Igreja que é a portadora do “Lógos”. Os anjos exprimem sua Theo-logia, a visão de Deus, no Trishagion. Na oração individual, porém, é o coração do homem que, por si mesmo, procura a Deus, cada um a seu modo. Trata-se de uma oração particular, mas que não se separa absolutamente da comunidade. A expressão “oração privada” usada na ascese moderna é, pois, inadequada. A palavra “privatus” significa sequestrado. O “homo privatus” é o que foi sequestrado dos negócios públicos ou que se afastou deles livremente. Uma oração privada, que não tenha parte na comunidade, não existe para O cristão. Sua oração é sempre a de um membro do Corpo místico de Cristo, pertencendo assim ao todo. Mesmo no indivíduo, quem reza é o Espírito de Cristo. Pela oração particular, nada se subtrai à Comunhão dos Santos, ao contrário, ela recebe maior riqueza de graças, tomando parte na oração particular de cada um. O capítulo sétimo sobre a humildade, ao mesmo tempo que dispõe o espírito para a Liturgia das Horas, prepara-o igualmente para a oração particular. Enquanto que a humildade inclui algo de negativo, a renúncia de si mesmo, a reverência, tem sentido positivo; é o respeito que, tratando-se de Deus, se torna “devotio”, devoção e espírito de sacrifício. O Senhor de todas as coisas, a razão e o princípio e todo o ser, tem direito, da nossa parte, à esta devoção, independente de tudo que é criado. Na Liturgia das Horas apresenta-se o indivíduo diante do supremo Senhor, fazendo parte da comunidade dos eleitos em união com os anjos que cantam. Na oração particular, sua posição é diferente. Daí o colorido delicado que s. Bento, neste capítulo, dá à humildade: Com toda a humildade. É com toda a humildade possível que a pobre criatura deve estar diante do Onipotente (Pantokrátor), rodeado das constelações do Zodíaco, símbolo de toda à criação, para apresentar-lhe seus pedidos.
Este encontro, frente a frente, entre a majestade divina e o pobre suplicante apresentando seus assuntos particulares, leva o homem ao abalo interior até à “compunção”. Este termo, ainda não conhecido na época do latim clássico, significa a dor d’alma que nasce do sentimento de culpa e da própria baixeza e conduz ao arrependimento. Em uma alma que se acha sob a impressão da grandeza de Deus, esta dor, oriunda do arrependimento, desfaz-se em lágrimas que, para Deus, têm mais valor do que qualquer palavra. Tal emoção íntima e profunda é um dom do Espírito Santo. O dom das lágrimas era tido em grande estima, já entre os Padres do deserto, como sendo uma prova do espírito de penitência. Ainda hoje se encontra, no Missal Romano, uma oração para pedir o dom das lágrimas. A oração das lágrimas é a última expressão da pureza de coração que é, principalmente por Cassiano, mestre predileto de S. Bento, equiparada à caritas, ao amor de Deus. O homem torna-se prolixo ao falar de assuntos pessoais, o que revela falta de autodomínio e de recolhimento. Acontece isso principalmente com os habitantes de clima quente, cuja vivacidade os leva insensivelmente à loquacidade em suas preces. S. Bento exige, pois, que a oração particular seja curta, só se alongando por inspiração divina. Seu valor depende da pureza com que é feita em união com Deus e livre dos laços terrenos. Com a pureza estamos certos de ser ouvidos. Voltando-se a alma para Deus e abrindo-se ao influxo de sua graça, torna-se capaz de receber o Espírito divino, e assim ser atendida. Não se deve esquecer que, mesmo na oração em que se sentem os efeitos mais profundos da caridade, a intensificação do afeto que se produz então na alma, é um dom de Deus. O homem, por si mesmo, dificilmente pode permanecer em oração muito tempo sem se distrair. Assim os atos de oração devem ser curtos, mas a atitude interior da oração (humildade, reverência, devoção) ser alimentada e desenvolvida e tornar-se uma virtude permanente no monge, como preparação da alma para a ação de Deus, a inspiração da graça divina. O Espírito Santo sempre tem livre acesso nas almas purificadas do pecado e do mundo,
Em comunidade, o tempo reservado à oração particular deve ser breve. Esta última determinação de S. Bento não se relaciona com a Liturgia das Horas, que já está definitivamente organizado quanto À extensão e ao tempo, mas à oração particular que se realiza depois do canto dos salmos, enquanto todos se acham ainda reunidos no oratório. A oração particular formava a parte final, contemplativa, do ofício divino. Mas nem todos se deixam impressionar no mesmo grau de intensidade pela solene salmodia. Essa não ecoa de igual modo em todos. S. Gregório Magno nos conta como S. Bento, em Subiaco, teve de libertar do influxo do espírito mau a um monge que, durante a oração particular dos irmãos, no fim do Ofício Divino, não permanecia no coro; saía e ficava andando lá fora. Assim, para a oração particular que deve ser feita de joelhos, o abade reservará apenas um curto espaço de tempo, no fim do qual dará um sinal para que todos se levantem ao mesmo tempo. Neste capítulo e no anterior, S. Bento nos revela sua grande estima, tanto pelo ofício divino que se reza em comum, como pela oração feita em particular. Nas últimas disposições do nosso capítulo, nota-nos como ele insiste na seriedade, na sinceridade e elevação de alma quando se trata precisamente da oração particular. Diante de Deus não deve haver nada de falso ou artificial. Nestas determinações sobre a oração particular, S. Bento se inspirou também na liturgia da Igreja. Em certas cerimônias litúrgicas, às vezes, somos convidados à oração particular, mas apenas pouco tempo. Elevar a alma a Deus, dizer uma palavra breve, saída das entranhas da alma, é a todos possível, mas não se pode exigir de ninguém que permaneça longo tempo em oração, a não ser que se queira ficar só em palavras. Todas estas prescrições dadas por S. Bento sobre a oração Inspiram-se no pensamento da “visão da divina majestade”. Dir-se-ia que a piedade paterna desaparece. Entretanto, para que o filho possa encontrar o Pai, mesmo na majestade de Rei, são condições: o respeito aliado à verdade, a humildade unida ao devotamento de coração puro, as lágrimas de uma alma contrita. A bondade acolhedora do Pai é também uma graça do Espírito Santo que se manifesta na inspiração da raça divina. Esta inspiração da graça divina faz que na Liturgia das Horas a alma do monge se assemelhe à palavra do Pai (isto é, ao Verbo). Na oração particular é ela que recebe as palavras do suplicante e as conduz a Deus para receberem a aprovação. Assim, a Liturgia das Horas é como um treino para a oração particular e essa, por sua vez, uma preparação e disposição para a recitação daquele. Tanto o canto dos salmos como a prece particular recebem vida e santidade da graça, produzida pelo sopro do Espírito Santo.
A doutrina de S. Bento sobre a oração assinala um dos pontos culminantes da Santa Regra. Nos ensinamentos relativos à oração está expressa a essência e o sentido do estado monástico. Particularmente característica é a última parte do capítulo vigésimo. A primazia cabe aqui incondicionalmente à comunidade e não ao indivíduo, mesmo ao exercer esse a atividade mais sublime de seu espírito. Dado o sinal, levantam-se todos e ao mesmo tempo e até aqueles que tenham recebido maiores graças, devem interromper a oração para, formando uma unidade com os menos privilegiados, acompanharem o ritmo da vida comum.
Dom Ildefonso Herwegen, OSB, Sentido e Espírito da Regra de São Bento, pág. 188-193
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