“Cremos estar em toda parte a presença divina e que “os olhos do Senhor vêem em todo lugar os bons e os maus”. Creiamos nisso principalmente e sem dúvida alguma, quando estamos presentes ao Ofício Divino. Lembremo-nos, pois, sempre, do que diz o Profeta: “Servi ao Senhor no temor”. E também: “Salmodiai sabiamente”. E ainda: “Cantar-vos-ei em face dos anjos”. Consideremos, pois, de que maneira cumpre estar na presença da Divindade e de seus anjos; e tal seja a nossa presença na salmodia, que nossa mente concorde com nossa voz.”
RSB, Cap. 19
“Os olhos do Senhor estão postados, em toda parte, sobre os bons e os maus”. Esta citação da Sagrada Escritura que aqui figura como uma introdução geral, estabelece relação imediata com o primeiro grau da humildade onde aparece a mesma citação referindo-se aos anjos que, noite e dia, anunciam ao Senhor nossos trabalhos e ações (cap. 7).
Se todas as nossas ações devem realizar-se na presença de Deus, sob a constante vigilância dos anjos, quanto mais quando entramos em imediata relação com Deus! A consciência de estarmos na presença de Deus e de seus anjos deve então ser perfeita. “Estamos a realizar o ofício divino”. E o Ofício Divino é o trabalho específico do monge, “o fardo da servidão”, a maior obra que pode realizar. Para esse trabalho devem convergir todas as energias. Nele se devem concentrar completamente todos os esforços do homem interior. Deste sentimento de obrigação do ofício, nasceu também o cabeçalho do capítulo com a indicação do conteúdo: Da disciplina na recitação dos Salmos.
Desconheceria a intenção de S. Bento, quem quisesse interpretar este título apenas como a atitude que os monges devem observar durante a recitação dos salmos. O conceito que o termo “disciplina” exprime é genuinamente romano, e significa a disciplina proveniente da educação, a manifestação exterior de um recolhimento interior das potências da alma.
Ao “em toda parte” contrapõe-se o “Ofício Divino” como sendo um grau elevado da presença divina. É certo que Deus está em toda parte e em todo lugar pode ser adorado, pois traz o universo em suas mãos. Mas a Liturgia das Horas celebrado em um lugar sagrado eleva o homem acima do “Cosmos” e o transporta para a esfera do supra terreno, do eterno, do céu que é representado pelo Oratório, imagem da cidade santa, da nova Jerusalém que baixou do céu (Ap 21, 2). O verdadeiro agente no culto é Deus, nós somos apenas seus instrumentos e órgãos. Pela graça, Ele desce para ficar a nosso lado, e nós subimos para nos unirmos à Ele. Por esta presença de Deus, a qual se realiza principalmente no ofício divino, devemos crer firmemente que seus olhos estão pousados em nossa alma para ver se cantamos seus louvores com os corações puros. Estamos unidos a Deus, tanto pelo Ofício Divino em nós como pelo nosso ofício a Deus.
S. Bento mostra pela Sagrada Escritura como o monge alcança, na Liturgia das Horas, esta elevação para as alturas, na união com Deus: “Servi ao Senhor no temor” (Sl 2, 11). A primeira condição do verdadeiro “Ofício Divino” está no primeiro grau da humildade, é o temor de Deus, o sentimento da grandeza e majestade de Deus e a consciência da própria fraqueza e insuficiência. O temor de Deus é o princípio da sabedoria, daí o “Salmodiai sabiamente” (Sl 46, 8). A reverência diante de Deus alarga o espírito e o coração para a plenitude da caridade divina. “Ser sábio” significa “ter sabor”, “saborear”. Seu sentido aqui é, pois: tornar-se partícipe da alegria da plenitude divina. A salmodia é o canto, o júbilo, a alegria, o louvor da glória divina: “Nós vos damos graças por vossa imensa glória”. Sabedoria quer dizer luz divina em nós, inspiração do Espírito Santo. O canto dos salmos é, assim, uma oração pneumática, profética, em que a Esposa de Cristo se desprende de todo o peso e vínculo terreno. Toda a Liturgia das Horas é, em essência, a expressão de um santo entusiasmo, uma imagem prática da união com Deus no céu. Por este motivo cantamos: “Cantar-vos-ei em face dos anjos” (Sl 137, 2). Tomando parte nos coros angélicos afastados das coisas terrenas, oferecemos a Deus nosso hino de louvor. Assim como o “Santo, Santo, Santo” cantado pelos anjos, vem da visão beatífica que estes espíritos celestes gozam, assim também nosso louvor divino nasce do conhecimento pela fé. A salmodia é a mais perfeita manifestação da vida angélica dos monges. Enquanto é possível às criaturas mortais, participam eles aqui, perfeitamente, do louvor dos anjos.
O ofício divino no temor, a conversão interior do monge pela sabedoria de Deus e sua participação no louvor dos anjos, eis os três degraus pelos quais o coro monástico sobe a Deus, antecipando na terra a adoração tributada a Deus no céu.
O coro dos monges é associado ao coro dos anjos. Existe aqui mais do que à união puramente intencional e ideal de dois mundos. Toda a liturgia participa da imutabilidade da vida eterna, pairando acima dos acontecimentos do mundo. Ela canta o Aleluia triunfalmente em meio às tristezas, angústias e confusões deste mundo. Os monges, os portadores da vida angélica, já se acham em uma comunhão viva com os bem-aventurados que cantam os louvores divinos; estão na “presença de Deus e de seus anjos”. Esta ideia provém da tradição monástica oriental e significa muito mais do que uma simples presença intencional de Deus; revela o caráter de mistério do culto litúrgico. Do tempo de S. Bento temos, em Ravena e em outros lugares da Itália, pinturas bizantinas representando o “Kyrios”, com majestade sublime sentado num trono, rodeado de anjos. Estes quadros queriam representar o Senhor de todas as coisas em companhia dos anjos, portanto, toda a glória celeste presente ao ofício divino. Isso aparece, de modo particular, nos mosaicos de Ravena, nas procissões de ofertório e de homenagem dos santos confessores e virgens, na igreja de S. Apollinare Nuovo e na abside de S. Vitale. O que essas pinturas representam realiza-se entre os fiéis sob os véus do mistério.
A expressão “na presença da Divindade” significa uma divina presença especialmente abundante de graças vindas de Deus. Por meio dela, a comunidade monástica, que é semelhante aos anjos, eleva-se ao coro dos anjos que salmodiam. A união com Deus assim obtida tem um caráter quase sacramental. Isso é confirmado também por Victor Warnach, na explicação que dá ao final do nosso capítulo: “e tal seja a nossa presença na salmodia, que nossa mente concorde com nossa voz”. “Mente” significa o espírito do homem, feito à imagem do “Lógos”, a parte de nosso ser que se relaciona com o céu. “Voz” não é apenas nossa voz que emprestamos ao espírito, a vibração de nosso espírito na terra, mas, em primeiro lugar, a palavra sagrada pronunciada no ofício divino. Cabe a nosso espírito repensar os inesgotáveis pensamentos que Deus, mediante seu Espírito Santo, depositou nas palavras dos salmos, hinos, e lições. Mais do que a atenção psicológica ou a compreensão filológica dos textos sagrados importa a S. Bento a união, segundo seu ser inteiro, do “homem interior” com o Verbo divino, a ponto de formar um só coração com Ele (“concorde”). A voz implica a atualização do “Lógos” eterno como sendo o protótipo de todo o cristianismo em sua essência e vida, isto é, o próprio Cristo que há de tomar forma em nós (Gal. 4, 19). Não se trata, pois, de uma adaptação da mente à nossa voz, ou de cantar os salmos com atenção e compreensão, ainda que tudo isso, como condição indispensável, esteja incluído no pensamento do Santo Legislador. Mas o sentido profundo dessa sentença da Santa Regra consiste na união viva do nosso ser interior, pneumático, com o “Lógos” que se manifesta na palavra sagrada. O verdadeiro louvor divino não deve ser apenas um exercício da nossa voz, mas, conforme sua natureza mais íntima, uma obra realizada pelo homem remido pela graça de Cristo.
Se S. Bento lembra aos monges que devem cantar os salmos “na presença da Divindade e de seus anjos”, é que exige deles o máximo de vida interior. Mas Deus lhes infunde ao mesmo tempo o Espírito Santo, esta força vivificadora, sem a qual nosso Ofício Divino seria simples presunção humana. Graças a este mesmo Espírito divino, o monge se torna igual aos anjos, criaturas espirituais, realizando na Igreja militante o sublime louvor que a Igreja triunfante canta eternamente no céu. Todos os atos da Igreja, também seu louvor, possuem alguma coisa de nupcial: “Cantar é próprio de quem ama”, e com isso alguma coisa do anseio e espera, que só se realiza com a presença do Esposo ou “kyrios”. É o sentido da “adoração em espírito (Pneuma) e verdade (Lógos)” (Jo. 4, 23). Os verdadeiros adoradores são cheios do Espírito de Deus, a fim de que possam louvar o “Lógos” divino com as vozes que eles emprestam à Esposa. Assim, neste pequeno capítulo, S. Bento tentou explicar o que há de mais profundo na Liturgia das Horas, aquilo que lhe constitui a essência. Liturgia das Horas é o encontro de Deus com a comunidade monástica, através da palavra divina pronunciada pelos lábios da Igreja. É um canto e uma oração da comunidade intimamente relacionado com a “ação de graças” sacramental. Assim como a Eucaristia é nossa participação no Sacrifício de Cristo e deste modo na caridade do Kyrios, assim o Ofício Divino, como Doxologia, é o retorno para o próprio Deus, em união com os anjos e os santos, daquela glória divina que nos foi dada pelo Espírito. O Ofício Divino participa do mistério da união sacramental com Deus. É uma imagem do céu, que é o lugar da união inamissível com Deus e do louvor sem fim. “Aí celebraremos e veremos, veremos e amaremos, amaremos e louvaremos. Eis o que será no fim sem fim” (Sto. Agostinho).
Dom Ildefonso Herwegen, OSB, Sentido e Espírito da Regra de São Bento, pág. 183-187
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