Depois que se obteve, pelo exame humilde de si mesmo, tal sinceridade e simplicidade de desejos e tal fidelidade de amor, as sentenças seguintes parecem quase um retrocesso em comparação com a linha ascendente até então seguida:
“Não ser dado ao vinho,
não ser voraz,
não ser amante do sono,
não ser preguiçoso,
não ser murmurador, .
não ser detrator”.
Podemos notar que, às vezes, homens virtuosos ainda são bastante inclinados aos prazeres da mesa e apreciam um certo bem estar material. Enquanto, de um lado, fazem grandes sacrifícios espirituais, deixam-se por outro lado levar por tendências inferiores. Vale isto não somente no tocante à comida, bebida e sono; mas ainda evitam em geral qualquer esforço, caindo facilmente na preguiça. São cheios de caprichos e, por causa da mutabilidade de caráter, criticam os superiores e confrades. Não gostam de admitir nos outros a seriedade de esforços e o êxito. Todos os defeitos que são censurados aqui têm origem na falta de domínio sobre si mesmo. Eles são um sinal de mediocridade do caráter, que se deixa arrastar pelo egoísmo. Seria humilhante não quisesse o monge lutar seriamente contra tais inclinações, cuja emenda depende de uma decisão enérgica da vontade.
Não fazer injustiça, mas suportar pacientemente as que lhe são feitas.
Amar os inimigos.
Não retribuir com maldição aos que o amaldiçoam, mas antes abençoá-los.
Suportar perseguição pela justiça.
Não ser soberbo.“
RSB, Cap. 4, 22-34
Aqui já se inicia a “conversatio” propriamente monástica, propondo-se primeiro e de modo fundamental, a segura organização da vida interior:
“Não satisfazer a ira,
não dar tempo à cólera,
não guardar dolo no coração,
não oferecer paz simulada,
não se afastar da caridade,
não jurar para não ser eventualmente perjuro,
dizer a verdade de coração e de boca”.
Como a última sentença acentua em resumo, tem todo este parágrafo por fim regular a atitude interior contra qualquer espécie de mentira, contendo ao mesmo tempo a instrução prática para uma disposição honesta determinada pela fé.
A ira pode ser nobre, de acordo com o motivo e a finalidade. Por esta razão não se exclui simplesmente sua presença ou sua explosão repentina. Como, porém, ela é quase sempre alimentada pelo amor próprio, deve ser submetida inteiramente ao domínio do espírito. Não se lhe deve deixar tempo para explosões desenfreadas e violentas. A intenção de enganar, a paz simulada, o recusar a caridade, as afirmações falsas e até juramentadas, tudo isso dá testemunho de falsidade e sutileza interior, de um modo errado de pensar e de julgar. Como um freio a tudo isso, deve-se dar valor à sentença final: “Dizer a verdade de coração e de boca”.
Ao pensar segue-se o querer:
“Não retribuir mal com mal (1 Pd 3, 9),
“Não cometer injustiça, mas suportar com paciência a recebida,
amar os inimigos (Lc 6, 27),
aos que nos desprezam não responder com desprezo,
mas, ao contrário, abençoá-los (1 Pd 3, 9),
sofrer perseguições por amor da justiça (Mt 5, 10),
não ser orgulhoso”.
A orientação falsa da vontade há de ser interiormente corrigida e encaminhada para o bem. Todas as faltas de caridade devem ser contrabalançadas por uma caridade pronta ao sacrifício e até mesmo acompanhada de sofrimento. O prazer da vingança e o da desforra de ofensas recebidas, tem de ser excluído. Mesmo a injustiça devemos suportá-la pacientemente. Segundo a palavra do Senhor (Mt 5, 44) temos de aturar os inimigos caridosamente, respondendo às suas maldições com bênção e sua perseguição será sofrida por amor dos justos interesses de Deus. O orgulho, raiz de todos os pecados (Eclo 10, 15), é a causa de nosso fracasso diante de toda uma série de exigências que, à semelhança de subida, são apresentadas à nossa absoluta sinceridade (24-30) e à atitude cristã de nossa vontade (31-38), por amor de Cristo. É, pois, com razão que S. Bento encerra todo este parágrafo que trata da modificação interior de nosso pensar e querer, numa palavra: “não ser soberbo”.
A sentença seguinte inicia a doutrina sobrenatural das virtudes, com o programa ordinário da vida cristã:
“Renunciar a si mesmo para seguir a Cristo (Luc. 9, 23).
Daqui em diante, S. Bento passa a direção para Cristo. A partir deste ponto não deseja o homem senão livrar-se de faltas substanciais contra o direito natural, sancionado por Deus no monte Sinai; até as Exigências do seu próprio eu, ele as diminui em benefício da comunidade. A vocação do monge para seguir a doutrina e o exemplo de Cristo, força-o a aspirar ao alto. Em primeiro lugar, deve dominar perfeitamente o seu corpo: “castigo o meu corpo e o mantenho em servidão” (1 Cor. 9, 27). S. Paulo escreveu estas palavras referindo-se aos jogos antigos, cujos severos treinos são de novo compreendidos pelo homem moderno. Assim, o “abnegar a si mesmo” é expresso nas sentenças:
“castigar o corpo (1 Cor. 9, 27),
não dar valor aos prazeres da carne,
amar o jejum (não praticá-lo apenas por obrigação)”.
Limitando o próprio eu em relação aos prazeres da vida corporal, temos a possibilidade de auxiliar o próximo em suas necessidades. Com isso fica confirmado o “seguir a Cristo”: “O que fizestes aos meus irmãos, foi a mim que o fizestes” (Mt. 25, 40). Perante o tribunal divino será isso decisivo para nossa eternidade (Mt. 25, 46):
“Socorrer os pobres (Mt. 25, 35),
vestir os nus (ib. 25, 36),
visitar os enfermos (ib.),
enterrar os mortos (Tob 1, 21; 2, 4 ss),
ajudar nas tribulações,
consolar os tristes”.
Todas estas “boas obras” constituem uma imitação do Senhor, do qual narram os Atos dos Apóstolos: “Andava distribuindo benefícios e fazendo curas” (10, 38). Os necessitados supramencionados precisam dos meios de vida indispensáveis. Eles, ou perderam a própria vida, e como a mortos só podemos mesmo prestar-lhes as últimas honras, a que cada homem, enquanto é criatura de Deus, tem direito, ou lutam corporal ou espiritualmente em tal miséria, que equivale a uma espécie de morte. Na opinião do mundo, para a sociedade humana, devem ser igualados aos mortos, pois estão excluídos do convívio social dos homens. Quem não pode prover às condições externas de vida, já não tem valor para o mundo. Precisamente a estes infelizes dedicar-se-ão os que querem seguir os vestígios de Cristo. Aquele que quiser se dedicar com amor aos deserdados da vida, tem de se libertar do modo de agir do mundo, tornar-se um forasteiro aqui e não preferir nenhum bem terreno ao amor de Cristo. Estas duas sentenças, a segunda das quais é a consequência positiva da primeira formulada negativamente, constituem a transição para os elementos da perfeição cristã.
Primeiramente, amar ao Senhor Deus de todo o coração, com toda a alma, com todas as forças.
Depois, amar ao próximo como a si mesmo.
Em seguida, não matar.
Não cometer adultério.
Não furtar.
Não cobiçar.
Não levantar falso testemunho.
Honrar todos os homens.
E não fazer a outrem o que não quer que lhe seja feito.”
RSB, Cap. 4, 1-9
Na proclamação dos dez mandamentos, no monte Sinai, o povo eleito foi segregado dentre todos os povos pagãos por meio da obrigação de adorar um só Deus: “Eu sou o Senhor, teu Deus… Não possuirás nenhum deus estranho a meu lado” (Ex 20, 2-3). A fé expressa pelas palavras: “Nosso Senhor Deus é um só Senhor (Dt 6, 4) é enobrecida, de maneira excelente, pelo mandamento do amor de Deus: “Amarás o Senhor teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma, e com todas as tuas forças”. Mas Cristo, o Redentor, que veio ao mundo para cumprir a lei, subordinou a esse mandamento um outro: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Luc. 10, 27; Mc. 12, 31). Estes dois mandamentos, do amor de Deus e do próximo, fundiram-se em uma inseparável unidade (1 Jo 4, 20); constituem o mandamento supremo (Mt. 22, 36), sobre o qual a Igreja de Cristo edificou toda a sua doutrina moral, e é a ele também que S. Bento proclama aqui, com toda a energia, como sendo o fundamento da doutrina moral no mosteiro. Na Igreja não existe dupla moral. À união eterna com Deus, que cada cristão no século procura conseguir em sua carreira profissional mediante a fidelidade aos preceitos de Deus, é também o escopo particular do monge, que este se esforça por realizar fora do século seguindo os mesmos mandamentos, apenas de modo mais imediato e com certas renúncias espontâneas, debaixo de uma regra e de um abade.
Por isso, por menos indicado que possa parecer lembrar aos monges os dez mandamentos, são contudo eles que constituem a base da moral natural, e todos os homens correm o perigo de transgredi-los, se não na compreensão elementar dos mesmos, ao menos em seus efeitos mais delicados. Como já se observa na Didaché, também S. Bento não reproduz o decálogo inteiro, nem segue a ordem indicada na Sagrada Escritura. O que o Santo pretende é estabelecer sua doutrina de perfeição sobre a base do direito natural. Os fundamentos de qualquer sociedade humana são os mandamentos expressos sob forma negativa:
“Não matar, não cometer adultério, não furtar, não cobiçar, não levantar falso testemunho”,
Sem eles, a ordem natural transforma-se em luta de todos contra todos. Em resumo, trata-se das paixões elementares da natureza humana, corrompida pelo pecado. Deve esta ser dominada pelos preceitos mencionados e enquadrada dentro da ordem comum da sociedade humana. Qualquer esforço para alcançar as virtudes cristãs tem de começar pela luta contra as paixões inferiores. O próprio S. Bento, em Vicovaro, experimentou, de maneira tremenda, como estas paixões podem explodir sob forma primitiva e selvagem até nos monges, apesar das privações e dos rigores externos. Ele quer, por isso, que cada monge tenha diante dos olhos esse princípio fundamental de toda autoeducação. O mandamento positivo:
“honrar todos os homens” (1 Pd 2, 17).
é como um complemento do quarto mandamento:
“honra teu pai e tua mãe” (Ex. 20, 12),
Imediatamente após o decálogo vem uma sentença que se encontra na Sagrada Escritura e na Didaché, mas que, pelo conteúdo e pela forma, é um provérbio humano de valor universal: “Não se faça a outrem o que não se quer que aconteça consigo mesmo” (Tob 4, 16; em sentido positivo Mt. 7, 12). Esta máxima de vida tirada da experiência natural e já corrente na antiguidade encerra o primeiro parágrafo dos instrumentos das boas obras.
“Cingidos, pois, os rins com a fé e a observância das boas ações, guiados pelo Evangelho, trilhemos os seus caminhos para que mereçamos ver aquele que nos chamou para o seu reino. Se queremos habitar na tenda real do acampamento desse reino, é preciso correr pelo caminho das boas obras, de outra forma nunca se há de chegar lá. Mas, com o profeta, interroguemos o Senhor, dizendo-lhe: ‘Senhor, quem habitará na vossa tenda e descansará na vossa montanha santa?‘. Depois dessa pergunta, irmãos, ouçamos o Senhor que responde e nos mostra o caminho dessa mesma tenda, dizendo: ‘É aquele que caminha sem mancha e realiza a justiça; aquele que fala a verdade no seu coração, que não traz o dolo em sua língua, que não faz o mal ao próximo e não dá acolhida à injúria contra o seu próximo‘”
RSB, Prólogo, 21-27
O caminho, depois de conhecido, deve palmilhado. “Cinjamos, pois nossas ilhargas com a fé e, ainda mais com a confirmação da fé através das obras”. Antigamente, quem se punha a caminho arregaçava a túnica.
Com as palavras “Cingidos, pois, os rins” apoia-se S. Bento em Ef 6, 14-15, volvendo mentalmente em torno dessa passagem: “Portanto, ponde-vos de pé e cingi os vossos rins com a verdade e revesti-vos da couraça da justiça e calçai os vossos pés com a preparação do evangelho da paz”. Enquanto S. Paulo prossegue dando o sentido das armaduras do legionário romano, distancia-se S. Bento do Apóstolo, explicando o caminho que conduz ao tabernáculo do rei. Preparemo-nos para a jornada, percorramos rapidamente as distâncias, as marchas diárias do caminho indicado, a fim de merecermos ver Aquele que nos chamou a seu reino! Entre os antigos mestres do monarquismo, por exemplo, Evágrio e Cassiano, “fé” está intimamente relacionada com “temor”, não só o temor de Deus enquanto é o fundamento da perfeição, mas de modo particular o temor do juízo final e do castigo eterno. “Observância” é a prática da “fé” por meio das boas obras. A fé e os atos resultantes da fé são inspirados sob a égide do Evangelho. O “caminho da vida” que leva à visão do Senhor, deve ser a mesma que o Senhor seguiu. Trata-se, pois da imitação de Cristo segundo os Evangelhos.
Partindo de seu insistente convite para que corramos ao tabernáculo do Rei, por meio de boas obras, passa S. Bento a extensas considerações sobre a atitude espiritual do monge, enquanto é condição indispensável de sua união com Deus. “Interroguemos o Senhor juntamente com o profeta: Senhor, que habitará em vosso tabernáculo e quem repousará em vossa montanha santa?” A doutrina que se segue sobre a virtude, constitui o caminho do tabernáculo real e vale para os que andam neste caminho. O último fim é o habitar e o repousar.
“E procurando o Senhor o seu operário na multidão do povo, ao qual clama estas coisas, diz ainda: “Qual é o homem que quer a vida e deseja ver dias felizes?” Se, ouvindo, responderes: “Eu”, dir-te-á Deus: “Se queres possuir a verdadeira e perpétua vida, guarda a tua língua de dizer o mal e que teus lábios não profiram a falsidade, afasta-te do mal e faze o bem, procura a paz e segue-a”. E quando tiveres feito isso, estarão meus olhos sobre ti e meus ouvidos junto às tuas preces, e antes que me invoques dir-te-ei: “Eis-me aqui”. Que há de mais doce para nós, caríssimos irmãos, do que esta voz do Senhor a convidar-nos? Eis que pela sua piedade nos mostra o Senhor o caminho da vida.”
RSB, Prólogo, 14-20
No meio da grande multidão, o Senhor procura seu operário; do meio da turba agitada e comprimida ergue-se a voz de Deus (clama). Ele procura um operário. Empregar todas as energias na realização de uma grande tarefa é o que exprime cada um dos nomes dados ao monge: “filho”, “soldado”, “discípulo”, “operário”. Ser monge não quer dizer apenas ouvir e aprender no mosteiro; significa também pôr em prática o que se aprendeu. Todo esse trabalho, porém, tem por fim a “vida”. “Qual é o homem que deseja a vida?” Eis a questão decisiva. Aqui não se pode tratar senão de uma vida mais sublime que a terrena, a verdadeira e eterna vida que é equiparada à paz. Essa paz que almejamos e da qual jamais devemos abrir mão, é uma harmonia interior, reconciliação consigo mesmo, com Deus e com o próximo. Pax significa unidade, ausência de qualquer oposição.: Só está apto para a vocação monástica, quem busca esta paz. Pax é, em suma, o último fim da vida monástica. O romano antevia sempre, como finalidade de todas as lutas, a paz (Pax Romana). Nesse sentido, como sendo a recompensa de todas as lutas, Pax tornou-se também o lema do monaquismo beneditino em geral. Para o monge que vive em comunidade é uma pressuposição necessária a observância do preceito: “guarda tua língua do mal e teus lábios não profiram palavras enganadoras”. Só assim é possível conservar a paz na comunidade. “Se fizerdes assim, porei meus olhos sobre vós e inclinarei meus ouvidos às vossas súplicas”(Sl 33, 16), “e antes que chameis por mim, dir-vos-ei: estou aqui” (Is 58, 9). Essas palavras corroboram, de maneira grandiosa, o que se tem dito até agora. Ouvimos acima, que nossos olhos e ouvidos deviam estar voltados para a revelação divina. Aqui se nos afirma que, ao procurarmos a Deus, Seus olhos e ouvidos vêm a nosso encontro. Ainda mais: antes que O invoquemos, Ele nos dirá: “eis que estou aqui!”.
“Levantemo-nos então finalmente, pois a Escritura nos desperta dizendo: “Já é hora de nos levantarmos do sono”. E, com os olhos abertos para a luz deífica, ouçamos, ouvidos atentos, o que nos adverte a voz divina que clama todos os dias: “Hoje, se ouvirdes a sua voz, não permitais que se endureçam vossos corações” e de novo: “Quem tem ouvidos para ouvir, ouça o que o Espírito diz às igrejas”. E que diz? – “Vinde, meus filhos, ouvi-me, eu vos ensinarei o temor do Senhor. Correi enquanto tiverdes a luz da vida, para que as trevas da morte não vos envolvam”
RSB, Prólogo, 8-13
Aparece aqui a primeira citação da Sagrada Escritura, que a seguir ocupará um longo espaço na Santa Regra.
S. Bento considera o Antigo e o Novo Testamento como um todo, a “Escritura”, a palavra de Deus dirigida ao homens, a revelação divina na economia da salvação por meio do Espírito Santo. À Regra desconhece uma diferença fundamental entre os textos do Antigo e os do Novo Testamento. De um versículo dos salmos tira um preceito tão obrigatório quanto de ema palavra do Senhor, (nos Evangelhos. Cada palavra da Sagrada Escritura é inspirada pelo mesmo Espírito Santo. E por isso que S. Bento não raro, em uma só citação, reúne palavras do Antigo Testamento com palavras do Novo.
Do Antigo Testamento. S. Bento dá preferência ao livro dos Salmos. Os versículos, citados por ele, revelam sua familiaridade com com este tesouro de oração litúrgica e e seu grande amor por estes cânticos sagrados. S. Bento sentiu, de modo particular, o espírito indestrutível, o estro profético que transpira dos Salmos.
“Levantemo-nos finalmente” arranca-nos à força da letargia espiritual, obrigando-nos a uma mudança completa de vida. Se quisermos alcançar o fim, a glória, temos de despertar para uma vida consciente. De olhos bem abertos devemos encarar a luz da graça que nos ilumina e nos diviniza. Com os ouvidos “feridos como por trovão”, havemos de ouvir a voz divina, a qual diariamente, ao se cantar o invitatório nas Vigílias, nos admoesta dizendo: “Hoje, se ouvirdes sua voz, não endureçais vossos corações”! As expressões “já é hora”, “hoje”, lembram-nos que vivemos em um mundo sobrenatural, sem os limites do tempo, em que a cada instante podemos voltar novamente ao princípio.
“Antes de tudo, quando encetares algo de bom, pede-lhe com oração muito insistente que seja por ele plenamente realizado, a fim de que nunca venha a entristecer-se, por causa das nossas más ações, aquele que já se dignou contar-nos no número de seus filhos; assim, pois, devemos obedecer-lhe em todo tempo, usando de seus dons a nós concedidos para que não só não venha jamais, como pai irado, a deserdar seus filhos, nem tenha também, qual Senhor temível, irritado com nossas más ações, de entregar-nos à pena eterna como péssimos servos que o não quiseram seguir para a glória.”
RSB, Prólogo, 2-3
Antes de tudo, quando vais fazer qualquer boa obra, pede com instante oração que Ele a leve a bom termo, para que, tendo-se dignado contar-nos entre o número de seus filhos não deva um dia encolerizar-se por causa de nossas más ações. Temos pois de servi-lo com os dons que estão em nós, de tal modo que, não somente como um pai enraivecido não deserde um dia seus filhos, mas também como Senhor terrível, irritado com nossos pecados, não nos entregue ao castigo eterno, como a servos indignos que não O quiseram seguir à glória”. Antes de tudo (in primis), S. Bento coloca a oração. O princípio e o fim pertencem a Deus. Se conseguimos iniciar alguma coisa boa é porque já estão em nós “seus bens”, a saber: sua graça, seu Espírito, a cuja inspiração devemos obedecer. Essa obediência interior é a resposta que damos à vocação de filhos de Deus, a qual já no Batismo nos foi dada gratuitamente. “Por Ele”, refere-se a Cristo Senhor, verdadeiro Rei, sob cujas ordens queremos militar. Só Ele poderá levar a bom termo, o que sua graça desperta em nós. Ele se entristecerá com nossas más obras, quando não obedecermos a seu Espírito que vive em nós. Nesse caso, o Pai, encolerizado, não só deserdará os filhos que chamou por meio da graça, mas também, como “Senhor” (dominus no sentido romano), virá a nosso encontro, subtrair-nos-á sua paternidade e tratar-nos-á como a escravos indignos. Os que não o quiserem seguir à glória, receberão a eterna condenação.
“Para que voltes, pelo labor da obediência, àquele de quem te afastaste pela desídia da desobediência.A ti, pois, se dirige agora a minha palavra, quem quer que sejas que, renunciando às próprias vontades, empunhas as gloriosas e poderosíssimas armas da obediência para militar sob o Cristo Senhor, verdadeiro Rei.”
RSB, Prólogo, 2-3
A finalidade é a obediência. Nós todos temos parte na desobediência às ordens divinas pelo pecado original e por nossos pecados pessoais. Por isso nós todos precisamos de voltar a Deus pelo labor da obediência. Labor, além de esforço, trabalho, significa também sofrimento, necessidade. Assim, como a desobediência é preguiça, a obediência é trabalho e esforço. Mas é justamente pelo trabalho e pela luta que se revela a ação da vida e se realiza a ascensão às coisas mais elevadas.
A escuta é logo seguida da obediência. Escutar e não fazer é desobediência. Desobediência é preguiça, a obediência é trabalho e esforço.“Aquele, pois, que ouve estas minhas palavras e as põe em prática é semelhante a um homem prudente, que edificou sua casa sobre a rocha.Caiu a chuva, vieram as enchentes, sopraram os ventos e investiram contra aquela casa; ela, porém, não caiu, porque estava edificada na rocha. Mas aquele que ouve as minhas palavras e não as põe em prática é semelhante a um homem insensato, que construiu sua casa na areia. Caiu a chuva, vieram as enchentes, sopraram os ventos e investiram contra aquela casa; ela caiu e grande foi a sua ruína.” (Mt 7, 24-27)
É indispensável, portanto, o desejo de realizar aquilo que escutamos de Deus.
Mas a obediência somente será digna da aceitação de Deus e doce aos homens, se o que é ordenado for executado sem tremor, sem delongas, não mornamente, não com murmuração, nem com resposta de quem não quer.
“Escuta, filho, os preceitos do Mestre, e inclina o ouvido do teu coração; recebe de boa vontade e executa eficazmente o conselho de um bom pai”
RSB, Prólogo, 1
Escutar não apenas ouvir. Escutar (atender, obedecer) especificado ainda mais pela paterna filiação espiritual é indicado aqui como um dos elementos essenciais de toda a regra. Escutar inclui de antemão uma vontade de realizar a ação. Escutar é ainda reforçado, aprofundado e explicado por “inclina o ouvido do teu coração”. Essa expressão não é uma simples maneira de dizer, mas condensação de um conceito bem amplo. “Escuta” já diz que o ouvir, somente com o ouvido externo, não basta. Por meio da expressão “o ouvido do coração” acentua-se, mais uma vez, a necessidade absoluta de um escutar de coração, disposto à ação. A palavra da Santa Regra deve ser recebida com amor. Ao lado do conceito de “pai” coloca S. Bento o de “mestre” e “professor”. Assim, os dois conceitos: mestre e bom pai, juntamente constituem o de pai espiritual, sugerido pelo “Escuta, filho”, da introdução. Enquanto mestre, dá os preceitos, a doutrina; enquanto pai, intimamente unido ao filho, basta-lhe exercer influência sobre o coração do filho, por meio de admoestações. A doutrina, em geral, deve ser escutada e assimilada. A admoestação particular tem de ser recebida de coração alegre e posta em prática na própria vida.