“Se bem que a vida do monge deva ser, em todo tempo, uma observância de Quaresma, como, porém, esta força é de poucos, por isso aconselhamos os monges a guardarem, com toda a pureza, a sua vida nesses dias de Quaresma e também a apagarem, nesses santos dias, todas as negligências dos outros tempos. E isso será feito dignamente, se nos preservamos de todos os vícios e nos entregamos à oração com lágrimas, à leitura, à compunção do coração e à abstinência. Acrescentemos, portanto, nesses dias, alguma coisa ao encargo habitual da nossa servidão: orações especiais, abstinência de comida e bebida; e assim ofereça cada um a Deus, de espontânea vontade, com a alegria do Espírito Santo, alguma coisa além da medida estabelecida para si; isto é: subtraia ao seu corpo algo da comida, da bebida, do sono, da conversa, da escurrilidade, e, na alegria do desejo espiritual, espere a Santa Páscoa. Entretanto, mesmo aquilo que cada um oferece, sugira-o ao seu Abade, e seja realizado com a oração e a vontade dele, pois o que é feito sem a permissão do pai espiritual será reputado como presunção e vanglória e não como digno de recompensa. Portanto, tudo deve ser feito com a vontade do Abade.”
RSB, Cap. 49
Já no capítulo anterior nos foi apresentada a Quaresma assinalada pela escolha e aplicação cuidadosa da leitura. S. Bento não podia terminar sua distribuição do tempo, iniciada no capítulo 43, sem fazer menção especial do período de 40 dias, que precede 2 Páscoa. E o faz de maneira digna do sublime conceito que tinha da vida religioso-eclesiástica. Por estreitos que sejam os laços que o prendem à tradição eclesiástica e monástica, não deixa de imprimir também a este capítulo o cunho de sua grande personalidade.
A partir do primeiro concílio ecumênico, Nicéia 325, a palavra Quaresma soa de modo particularmente venerável na vida litúrgica e disciplinar da Igreja. O jejum pascal originou-se da vigília de Páscoa; passou depois para o Tríduo Pascal da Paixão e Ressurreição do Senhor e daí para toda a semana santa. Finalmente abrangeu os 40 dias que precedem a única festa de outrora, que por esta razão era a maior. Este santo tempo era dedicado não só ao jejum enquanto é um regime de vida mais rigoroso, mas principalmente ao serviço divino, à oração e à leitura, sendo reservado, de modo especial, ao ensino dos catecúmenos que se preparavam para o santo Batismo. O neófito experimentava no Batismo, sob a forma sacramental, a morte e a ressurreição do Senhor, transformando-se, por este modo em um membro do Corpo místico de Cristo, a santa Igreja. Assim, para cada cristão, os 40 dias antes de Páscoa, eram anualmente um tempo de recolhimento, de espírito de penitência e de preparação para a santa solenidade da Páscoa, sol brilhante a espalhar os raios sobre todo o ano litúrgico. A primeira frase deste capítulo é fundamental e contém o desejo do Santo Patriarca de que toda a vida do monge seja formada pela santa Quaresma. Isso mostra com que intensidade o monge deve participar deste tempo de santificação. O olhar de S. Bento está voltado para a parusia, a “Páscoa eterna”, a suprema glorificação com Cristo e em Cristo, À vida monástica é também o catecumenato para a vigília da morte e da ressurreição, respectivamente a oite e a aurora da eternidade. Desta consideração resulta, naturalmente, que a vida do monge deve ser uma Quaresma contínua, afastada do mundo, de seus bens e alegrias, dedicada unicamente à união íntima com Deus. S. Bento aplica aos monges o dito de S. Leão Magno, que se refere a todos os cristãos: São poucos os que possuem a energia, a constância e a perseverança que tal atitude requer, Assim, cada ano, nos dias da Quaresma, deve-se pôr em prática o que não é possível realizar durante toda a vida com a mesma ou ainda maior intensidade. Para isso se exige a atitude fundamental que dá à vida monástica seu sentido, à saber: guardar a vida com grande pureza. “Pureza” tem aqui o sentido de “pureza do coração”. Segundo Cassiano, a “pureza de coração” é, por essência, a caritas. Segundo este mesmo autor, a “pureza” consiste no estado interior livre de qualquer apego ao mal. Quando a “pureza do coração” se torna uma atitude constante da alma, graças à sua virtude operante apaga os pecados e negligências do tempo passado e transforma a santa quarentena em exercício de expiação para o monge. Esta purificação, em seu processo, obedece ao princípio interior da pureza é considerada de modo negativo é, por natureza, afastamento de qualquer contato com o mal; de modo positivo, porém, é o emprego de todos os meios que favorecem a ascensão para Deus. Estes meios são: a oração das lágrimas, a santa leitura, exame do próprio coração com arrependimento, moderação quanto às exigências naturais. Entrando na aplicação prática, S. Bento indica o que cada um, em particular, pode acrescentar ao que ordinariamente é exigido pela observância monástica, sem sair dos limites da vida comum. Ele enumera: orações especiais, abster-se de alimentos e bebidas, de sono e conversa, de qualquer superficialidade e alegrias excessivas. Propositadamente cita, em primeiro lugar, oração, leitura, penitência, por conseguinte concentração e preparação espiritual; só depois vem abstinência das coisas que agradam aos sentidos. Tudo isso são sacrifícios feitos com o fim de renunciar aos bens e alegrias naturais exteriores, Como dádivas, estas renúncias são insignificantes, mas pelo espírito de sacrifício agradam a Deus: são oferecidas pela graça do Espírito Santo e com o desejo da festa pascal, aguardada alegremente, desejo este infundido ainda pelo mesmo Espírito Santo. O monge se sente, pois, nestes quarenta dias de preparação, cheio de entusiasmo carismático. Suas penitências são apenas expressões da santa alegria com que o Espírito divino faz a alma transbordar na expectativa da santa noite de Páscoa. Este traço sobrenatural (pneumático) fundamental da solenidade do jejum é, depois, aplicado concretamente à vida monástica.
Por própria iniciativa, sob a inspiração do Espírito Santo, cada monge oferece seu sacrifício quaresmal. Pela primeira e última vez, a vontade própria, em geral tão fortemente reprovada, é aqui aprovada. Mas, mesmo nesta única vez, depende do consentimento do superior. O sacrifício que cada um faz particularmente deve ser submetido ao julgamento do abade e ser posto em prática depois de receber sua bênção e consentimento. O abade que é o portador do Espírito para toda a comunidade, deve também aprovar a manifestação que o Espírito faz aos seus discípulos a fim de que a mesma sirva de salvação para eles e para a comunidade. O que não trouxer esta espécie de selo do pai espiritual, não tem valor diante de Deus, ao contrário é presunção, vanglória, e não é aceito por Deus. O que se oferece por amor próprio não recebe resposta da parte de Deus nem merece a recompensa de sua graça. A vontade do monge só é agradável a Deus, quando se une à vontade do abade, e, por esse meio à de toda a comunidade. Daqui deduz S. Bento o princípio geral que vale para todos os atos da vida monástica: “Por conseguinte, deve-se fazer tudo com a vontade do abade”.
Dom Ildefonso Herwegen, OSB, Sentido e Espírito da Regra de São Bento, pág. 295-297
Deixe um comentário