“Os irmãos que se encontram em um trabalho tão distante que não podem acorrer na devida hora ao oratório, e tendo o Abade ponderado que assim é, celebrem o Ofício Divino ali mesmo onde trabalham, dobrando os joelhos, com temor divino. Da mesma forma, os que são mandados em viagem não deixem passar as horas estabelecidas, mas celebrem-nas consigo mesmos, como podem e não negligenciem cumprir com o encargo de sua servidão.”
RSB, Cap. 50
A existência humana está subordinada ao tempo e ao espaço, duas medidas cósmicas, primitivas. O tempo é a medida fluente, variável e variante. O espaço, tanto para o indivíduo como para a comunidade, representa o lugar, a medida estável e imutável. O homem moderno está totalmente sob o signo da medida fluente do tempo. Mas os modernos meios de transporte e os múltiplos acontecimentos e experiências de cada dia quase eliminam a presença do tempo. As mudanças bruscas e as sensações das impressões arrastam o homem. S. Bento ainda se mantém inteiramente no equilíbrio cósmico das coisas. Considera o tempo como criado por Deus para ser a medida das três fases pelas quais o homem mortal chega à perfeição: nascimento, idade madura, morte. Daí seu dever de passar por elas, observando-as. Ao lado da disposição do tempo para as horas canônicas, disposição sagrada, muito antiga e tradicional, S. Bento estabeleceu também um horário para o trabalho corporal e espiritual, obedecendo perfeitamente ao curso do sol em seu ritmo anual. Está, pois, como vimos, de acordo com a natureza, em harmonia com os períodos sacrais do tempo. Enquanto o homem vive sujeito às leis cósmicas da natureza, o elemento natural mais importante para sua vida é o lugar onde se desenrola sua existência. Atualmente o espaço foi ultrapassado pelo tempo. Quanto mais isso acontece, tanto mais a vida humana fica sujeita à inconstância e somente graças ao sistema de horas e minutos, obtido por processo técnico, alcança artificialmente uma certa estabilidade. À vida perdeu o ajustamento estável ao lugar. O estado de dependência do lugar ainda conservou em S. Bento toda sua importância. Na antiguidade, e também na idade média, a vida dava a sensação de equilíbrio por estar o tempo em harmonia com o lugar correspondente. Quando não havia esta correspondência, surgia uma irregularidade que precisava ser normalizada.
A comunidade monástica de S. Bento, em sua existência e aperfeiçoamento interno e externo, está sujeita à ordem de tempo e de lugar. Havendo qualquer irregularidade nessa dupla relação, devem-se tomar medidas para que a comunidade não seja prejudicada em sua estabilidade.
O lugar estabelecido para o Opus Dei é o Oratório. Mas se os irmãos trabalham tão afastados que não possam aí estar à hora conveniente, devem recitar o Ofício Divino onde trabalham; o lugar onde realizam seu trabalho manual torna-se o lugar do Ofício Divino. É de notar que S. Bento não diz “longe do mosteiro”, mas longe do oratório”, pondo em contraste oratório e campo de trabalho. Esta exceção tem como condição necessária o julgamento e a determinação do abade, cabeça da comunidade. Não pode ficar ao critério dos irmãos voltar ou não ao oratório, à hora do Ofício divino. Talvez alguns chegassem a tempo, outros não. O abade deve, pois, decidir antes de saírem, porque por sua ordem as Horas canônicas recitadas no campo ficam unidas às Horas canônicas cantadas pela comunidade no oratório. Nem se omite nem se transfere a Oração, mas recita-se, à “hora apropriada”, no lugar do trabalho. A Liturgia das Horas não pode ser reduzida por causa do trabalho. O campo torna-se Oratório; é consagrado para isso pela própria oração e pelos sentimentos que esta produz na alma. “Com tremor diante de Deus devem eles curvar os joelhos”. Expressão pouco usada! “Com temor divino” exprime tanto o temor subjetivo diante da majestade divina, como o sentimento objetivo de respeito e amor a Deus, infundido pelo Espírito Santo. S. Bento exige, durante a recitação da Liturgia das Horas, a mais profunda devoção, o que também se manifesta por meio da genuflexão. Não se requer, porém, que a Hora toda seja rezada de joelhos, o que seria contrário a todos os costumes da Igreja antiga e, além disso, um agravamento extraordinário para a oração feita no campo. Trata-se, antes, da genuflexão que antigamente precedia qualquer Ofício divino. Na Quaresma, em vez da genuflexão, fazia-se a prostração que consistia em lançar-se ao chão completamente. S. Bento também talvez se refira ao convite que se seguia à Hora canônica, o “dobremos os joelhos” no fim do Ofício Divino. Durante o trabalho diurno tratava-se apenas das Horas menores: Terça, Sexta e Nona, as quais certamente eram recitadas de pé e de cor, no tempo correspondente. Faltando a santidade própria do oratório e por causa das condições externas, sendo fácil a distração, devia-se insistir ainda mais no recolhimento interior e na piedade. A atitude exterior ajuda a aumentar a concentração interior. O sagrado trabalho manual e o santo serviço diante de Deus, os tempos sagrados e o lugar santificado por uma oração particularmente piedosa, unem-se apesar das circunstâncias anormais, formando uma perfeita unidade.
A situação do monge em viagem é semelhante à do que trabalha no campo; ambos se acham longe do lugar santo e da comunidade dos irmãos. O monge em viagem sente muito mais o afastamento do centro de sua vida religiosa e está mais exposto aos imprevistos do que quando trabalha fora dos muros monásticos. Viaja só ou com um companheiro e nessas condições não é possível qualquer espécie de solenidade, o que ainda se consegue com um grupo de trabalhadores no campo. Por esta razão diz S. Bento: “Como puderem, recitem em particular o Ofício”. O monge em viagem está exposto a tantas surpresas que facilmente podem escapar-lhe as horas sagradas. Deve ser cuidadoso e não negligenciar a obrigação que lhe é imposta. O encargo da servidão é a tarefa que lhe é indicada no serviço do supremo Senhor, é o dever de honra de toda a família monástica; cada membro da família toma parte nele. O monge, separado da comunidade, coloca-se, em espírito, no lugar que lhe compete, à hora apropriada ou hora marcada, através da dupla relação que tem para com Deus e para com a comunidade. Em meio ao mundo estranho, o monge se une à comunidade pelo Ofício Divino, às horas sagradas.
Dom Ildefonso Herwegen, OSB, Sentido e Espírito da Regra de São Bento, pág. 300-303
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