“Esteja ao cuidado do Abade o dever de anunciar a hora do Ofício Divino, de dia e de noite; ele próprio dê o sinal ou então encarregue desse cuidado a um irmão de tal modo solícito, que todas as coisas se realizem nas horas competentes. Entoem os salmos e antífonas, depois do Abade, na respectiva ordem, aqueles aos quais for ordenado. Não presuma cantar ou ler, a não ser quem pode desempenhar esse ofício de modo que se edifiquem os ouvintes; e seja feito com humildade, gravidade e tremor por quem o Abade tiver mandado.”
RSB, Cap. 47
Somente sejam indicados os que podem executar suas obrigações edificando os ouvintes. Esta edificação tem dois aspectos: à edificação interior, da alma, e o enriquecimento divino, a graça do Espírito Santo, contida no sentido literal dos cantos e leitura sagrada. Além disso há também a elevação igualmente espiritual que se transmite aos ouvintes, partindo da festividade externa, do canto, do rito, da alma que transpira da voz, da reprodução da letra, feita com profundo sentimento pelos cantores. S. Bento compreendeu profundamente o belo, o “esplendor da ordem”. Mas a edificação que ele espera do cantor, não depende absolutamente de impressões estéticas. A última sentença demonstra como esta edificação pressupõe valores puramente religiosos: o canto deve ser executado com humildade, dignidade e emoção espiritual. O primeiro requisito é a humildade, o desapego de si mesmo e a entrega piedosa a Deus. Daí resulta uma seriedade digna, madureza de alma e finalmente, como a mais sublime graça pneumática, a emoção interior provocada pela santidade de Deus como acontece com os próprios anjos.
Os antigos gregos atribuíam à ira e à inveja dos deuses o sentimento do homem primitivo diante dos poderes sobre-humanos, demoníacos e divinos. Os deuses deviam ser reconciliados pela expiação; sua ira tinha de ser afastada através do culto. Mas com o cristianismo, este temor transformou-se em respeito pela grandeza de Deus e uniu-se ao amor. O tremendum da religião tornou-se temor de Deus, um dos dons do Espírito Santo. Mas, se no texto e no canto este temor conseguir a expressão denominada por S. Bento de tremor, o entusiasmo carismático do cantor transforma-se, ao mesmo tempo, em emoção da comunidade que ouve. O tremor é semelhante à oração das lágrimas, é uma comoção muito profunda diante da Majestade do Senhor que nada tem, porém de apavorante, mas produz um efeito beatificante. “A nenhum elemento da Religião é tão necessário quanto a este a viva voz, a comunidade que permanece viva e o contato das pessoas”.
Em presença da riqueza de sentimentos provocada pela visão interior da grandeza de Deus, faltam as palavras. O tremor representa um estado de consciência religiosa que transpõe os limites da capacidade humana de expressão. Como raras vezes o faz, S. Bento expõe aqui de que atitude religiosa deve nascer a celebração da Liturgia das Horas capaz de edificar os assistentes. Percebe-se claramente uma progressão dos princípios responsáveis pela edificação. A atitude fundamental é à humildade enquanto é desprendimento de si mesmo ao executar o Ofício divino. À humildade traz como consequência um ar festivo, repassado de dignidade, consciente de representar a Igreja diante de seu Esposo. A esta devoção e consagração da Liturgia das Horas infunde o Espírito Santo o tremor, uma espécie de comoção que invade todo o ser diante da sublimidade ilimitada de Deus. Assim, a edificação dos ouvintes dá uma ideia da vida em união com Deus, na qual os monges cantam e lêem. Os cantores, leitores e ouvintes formam uma comunidade unida no Espírito Santo. S. Bento insinua aqui seu ideal da solenidade do Ofício Divino que tira da união com Deus pela graça sua dignidade exterior.
Este pequeno capítulo, desde o sinal para as horas canônicas até o entusiasmo produzido pelo Espírito Santo, proporciona também uma visão profunda do conceito pneumático que S. Bento tinha da vida monástica. Esta emoção que é um efeito da Liturgia das Horas, transforma-o .tanto em digna glorificação de Deus, como em uma fonte de santificação.
Dom Ildefonso Herwegen, OSB, Sentido e Espírito da Regra de São Bento, pág. 282-283
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